quinta-feira, 19 de novembro de 2015

A Comida Fala-A cozinha brasileira e suas raízes etnolinguistas.

Eu vim de Luanda, Ê , Ê Luanda (...)
Assim dizia uma canção dos anos 80 na belíssima voz de Lazzo Matumbe, cantor e compositor baiano.Palavras do universo culinário como Quiabo, Fubá, Bobó, Andu, Dendê, Dengo, Cachaça, Fuxico, Quitanda,Caçula, atestam a forte presença banto em nossa formação cultural.


O que poucos sabem é que muitos dos negros trazidos como escravos partir do século XVII eram de etnia banta, e deixaram raízes profundas na nossa língua e em nossa gastronomia.Entre os países com povos e línguas banto poderíamos citar Angola e Moçambique (que falam também português), Zimbábue, Camarões, Gabão, Quênia, Congo, Ruanda, Namíbia, Burundi e África do Sul. Como se pode ver, a palavra “banto” encerra enorme diversidade, tendo assim um significado muitíssimo mais amplo que o de um etnônimo (nome de etnia).
Para a historiadora e etnolinguista Yeda Castro, "Essa penetração banto se deve a um processo mais prolongado de contatos interétnicos e interculturais e a supremacia numérica de língua Banta entre os africanos transplantados para o Brasil colônia", deste modo, foi se delineando a língua falada no Brasil, à língua portuguesa que foi amplamente
influenciada pelo modo de falar dos escravos africanos e principalmente os que aqui primeiro chegaram por volta do século XVII, os povos de origem banto.
Estes bantos vieram principalmente da região de Congo e Angola, que antigamente se dividiam entre os reinos do Congo, Ndongo e reinos ovimbundos, entre outros.
Os bantos (originários da África Central) têm sido vítima de grande preconceito, desde os tempos da escravidão, ao serem considerados culturalmente inferiores aos povos vindos da África Ocidental (como jejes, hauçás e iorubás).
Para muitos estudiosos, estes povos teriam sido os únicos a manter intacta uma cultura africana no Brasil.
Segundo Edson Carneiro, o fato dos bantos terem, em quatrocentos anos, mesclado elementos da cultura branca e indígena em algumas de suas tradições, comprovaria a idéia de que sua cultura seria inferior à dos iorubáse sua mitologia mais rudimentar.
Assim sendo, cem anos após os primeiros estudos afro-brasileiros, é hora de superar os estereótipos que, no pensar da afro-brasilidade, nos têm impedido de perceber a importância do legado africano para o Brasil.
"A ama negra com seu linguajar banto, fez muitas vezes com as palavras o mesmo que com a comida: machucou-as, tiraram-lhes as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para a boca do menino branco as sílabas moles. Daí esse português de menino que no norte do Brasil, principalmente, é uma das falas mais doces deste mundo. Sem rr nem ss; as sílabas finas moles; palavras que só faltam desmanchar-se na boca da gente.
A linguagem infantil brasileira, e mesmo a portuguesa, tem um sabor quase africano: cacá, bumbum, tentén, nenén, tatá, papá, papapo, lili, mimi (...) Amolecimento que se deu em grande parte pela ação da ama negra junto à criança; do escravo preto junto ao filho do senhor branco. Os nomes próprios foram dos que mais se amaciaram, perdendo a solenidade, dissolvendo-se deliciosamente na boca dos escravos. Freyre (2001, p. 382)
Alguns autores como Yeda Pessoa de Castro e Nei Lopes, têm chamado atenção para um alarmante fato: a matriz africana mais importante para nossa formação cultural – a matriz banto – tem sido, desde o começo dos estudos afro-brasileiros, depreciada e esquecida em favor de outra matriz, a iorubá (também chamada nagô), que, apesar de importante, exerceu influência muito menos significativa para nossa formação.
O próprio termo “banto”, no entanto, continua sendo pouco conhecido, e compreender seu significado é o primeiro passo para que possamos reconhecer a dimensão de nossa herança africana.
“Banto” (ou bantu) significa, em centenas de línguas africanas, “as pessoas” ou seja, “os seres humanos”. Quando, no século XIX, um lingüista alemão – WilhemBleek – começou a estudar as línguas africanas para saber de onde e como tinham surgido, ele resolveu utilizar o termo “banto” para designar todas as línguas nas quais esta palavra – “banto” – possuía o mesmo significado; assim, na sua sistematização dos idiomas africanos, estas línguas passaram a ser chamadas de “línguas banto”.
Todas estas línguas têm também uma raiz comum, provavelmente uma língua muito antiga e desaparecida há milhares de anos, chamada de “protobanto” (CASTRO, 2001: 27-37).
Com a continuidade dos estudos sobre estes povos, vária outras semelhanças foram sendo percebidas, e de uma denominação para um conjunto de línguas, o termo banto passou a designar o conjunto dos próprios povos que as falavam, surgindo assim o hábito de usar o termo para designar pessoas, povos, culturas: os povos banto, a arte banto, a filosofia banto. O termo é amplamente utilizado hoje.
Os bantos tiveram importância fundamental na história brasileira, pois foram maciçamente introduzidos no Brasil durante os três séculos da escravidão. Ao contrário dos outros africanos (que ficaram restritos mais ao litoral e Minas Gerais), eles se espalharam por todas as regiões do Brasil, participando ativamente da reconstrução cultural que caracteriza nossa história.
Além dos povos bacongo (que falavam a língua quicongo e oriundos do Congo), dos ambundo (do Ndongo, que falavam o quimbundo) e dos ovimbundo (falantes do umbundo), vieram também os monjolo, os anjico, os balundo e muitos outros (CASTRO, 2001: 25-26).
O grande fluxo de bantos para o Brasil se deveu ao fato de que, para Portugal, Angola e toda África Central não passavam de um grande fornecedor de escravos para a colônia brasileira. Houve um verdadeiro esvaziamento populacional na África, primeiro nos reinos da costa, como Congo e Ndongo, e em seguida também nos reinos mais internos, como Cassanje e Matamba (DELGADO, V.3, 1940: 40).
Uma vez aqui, os bantos foram determinantes para a nossa formação social e cultural. Tiveram grande influência religiosa: a umbanda e os candomblés de caboclo e angola (variedades de candomblé) são banto em suas raízes.
Candomblé vem de “kandombélé”, que significa “rezar” em várias línguas banto, como umbanda vem de “mbanda”, que significa “algo sagrado”.
As influências vão muito além do campo religioso. A maioria das manifestações populares afro-brasileiras, vieram dos bantos. É o caso do samba, do jongo, das congadas, das festas do boi, da capoeira de Angola ou do Moçambique (CARNEIRO, 1991). Manifestações insuficientemente estudadas e que são muito mais que mero “folclore”.
Sem compreendê-las melhor, tampouco compreenderemos a importância do legado africano para nós. A mais marcante contribuição banto, foi no entanto, para a nossa língua e, consequentemente, para nossa forma de pensar e lidar com o mundo.
As línguas africanas foram o principal fator de transformação da língua portuguesa no Brasil e dentre elas, as línguas banto foram as mais importantes (principalmente o quicongo e o quimbundo).
Como escreveu a lingüista Yeda de Castro, em Falares Africanos na Bahia (2001:74), esta importância deveu-se “à antiguidade e superioridade numérica de seus falantes e à grandeza da dimensão alcançada pela sua distribuição humana (...)”. Como a mesma autora explica, vários aportes bantos, como “mucama”, caíram em desuso, pois eram relativos à época da escravidão. A maior parte deles, no entanto, estão completamente integrados ao nosso dia-a-dia. É o caso de “quitanda”, “carimbo”, “cachimbo”, “corcunda” ou “cachaça”. Às vezes, os termos banto substituíram por completo o equivalente português, como é o caso de “caçula”, que é a única palavra que temos para nos referirmos ao irmão mais novo.
Assim, se o Brasil pretende valorizar seu legado africano, é urgente que ele reconheça a importância dos bantos para sua história.
Veja abaixo uma pequena amostra de termos comuns de origem banto, extraído do livro “Falares Africanos na Bahia”:

CANJICA:papa de milho, do : quicongo /quimbundo
kanjika.
CAPANGA: guarda-costas, do quicongo/quimbundo
kimpungo.
CARIMBO: selo, sinete, do umbundukandimbu.
DENDÊ: palmeira, fruto da palmeira, do quicongo/
quimbundo/umbundundende.
DENGO: birra, manha, do quimbundo ndenge.
FUBÁ: farinha de milho, do quicongomfuba.
FUTUCAR: remexer, procurar, do quimbundo kufuca.
GANGORRA: balanço, do quicongokangula.
GINGA: balancear, movimento da capoeira, do quicongo/
quimbundo zinga.
LENGALENGA: conversa-fi ada, enganosa, do
quimbundo/quicongolenga-lenga.
MACACO: símio, do quicongomakaaku.
MACULÊLÊ: dança de bate-pau, do quicongo/
quimbundomankwaleele.
MACUMBA: manifestações religiosas de origem banto
(congo-angola), do quicongo/quimbundo makuba(= reza,
invocação).
MANDRAQUE: feiticeiro, mágico, do quicongo
mandóki.
MANGAR: zombar, caçoar, do quicongomannga.
MARACUTAIA: engodo, trapaça, do quimbundo
ma(dia)kutola.
MARIMBONDO: vespa, do umbundoalimbondo.
MINHOCA: verme anelídeo, do quicongo/quimbundo
nyoka (= cobra).
MOLEQUE: menino travesso, do quicongo/quimbundo/
umbundonleeke.
MONJOLO: engenho simples movido a água, do
quicongo/quimbundo mansulu.
MUAMBA: contrabando, fraude, do quicongo/
quimbundomuhamba.
QUIABO: fruto do quiabeiro, do quicongo/quimbundo
kiambo.



Pequeno Dicionario da Cozinha Baiana.

Verbete-A Acarajé-Bolinho de Oyá
“Uma massa branquinha de feijão, pilado no Oló, bem aerada com cebola e frito nas línguas de fogo do azeite de cheiro, servidas ainda quentes com uma boa dose de molho de pimenta, é talvez uma das mais gostosas experiências gastronômicas, um exemplo claro da resistência de um povo e sua dedicação ao oficio de alimentar o outro.”


O Acarajé é uma comida ritual do Orixá Iansã/Oyá, apesar de fazer parte do cotidiano de baianos e turistas que visitam nossa cidade.
Levi-Strauss em “O Triangulo Culinário”(1968) diz que o domínio da cozinha” Constitui uma forma de atividade humana verdadeiramente universal”, pois não existe sociedade que não tenha desenvolvido formas de preparar seus alimentos.

Segundo vários depoimentos da primeira metade do século XX, anos 30 e 40, as famílias ficavam esperando, ás sete horas da noite, a mulher do Acarajé passar, era uma espécie de cerimonia (...)
Por que sua voz era especialmente aguda e alta para anunciar de longe ‘Iê Acarajé, Iê Abará’; ai o povo se preparava pegava o dinheiro e iam as portas. Esse acarajé e esse Abará iam nas portas, como se come ainda na Costa D’África. (Ubiratan Castro de Araújo)

Caymmi -Preta do Acarajé

“Dez horas da noite
Na rua deserta
A preta mercando
Parece um lamento
Ê o abará
Na sua gamela
Tem molho e cheiroso
Pimenta da costa
Tem acarajé
Ô acarajé é cor
Ô la lá io
Vem benzer
Tá quentinho

Todo mundo gosta de acarajé
O trabalho que dá pra fazer que é
Todo mundo gosta de acarajé
Todo mundo gosta de abará
Ninguém quer saber o trabalho que dá
Todo mundo gosta de acarajé
O trabalho que dá pra fazer que é
Todo mundo gosta de acarajé
Todo mundo gosta de abará
Ninguém quer saber o trabalho que dá
Todo mundo gosta de abará
Todo mundo gosta de acarajé

Dez horas da noite
Na rua deserta
Quanto mais distante
Mais triste o lamento
Ê o abará...



Lenda do Acará
 O acará era um segredo entre Oxum e Xangô.
Só Oxum sabia os segredos de preparar o Acarajé, uma forma figurada do Agerê (o fogo que é feito nas obrigações de Xangô).
No dia do Agerê Xangô entra com Oxum e Iansã(Oyá) que trazem a panela do Agerê (sua comida), que era preparada por Oxum, e pede a Iansã que colocasse em sua cabeça e
Carybé
levasse para Xangô.
Iansã sempre cumpria este ritual e entregava a Xangô, saindo em seguida, e logo depois trazendo a panela como se já tivesse comido o que tinha dentro.
Um dia, Iansã estava cansada das incursões de Xangô, Iansã quis dividir os afetos de Xangô com Oxum, quando Oxum preparou o prato e pediu que ela levasse para Xangô, pediu mais uma vez que Iansã levasse a comida, ela colocou na cabeça e seguiu.
Oxum nunca tinha dito que ela não olhasse o que tinha dentro da panela, Oxum desconfiou que Iansã iria olhar o segredo para ver o que havia na panela, e ver o que comia Xangô.
Na metade do caminho Iansã, olhou para os lados e viu que não estava sendo observada, abriu a panela, e subia aquela língua de fogo.
Descobrindo o segredo, ela disse, agora sei o que ele come, ele come Acará, tampou rapidamente a panela, colocou na cabeça, e se apresentou a Xangô. Os deuses sempre sabem o que o outro fez ou vai fazer, Xangô, olhou bem nos olhos de Iansã e disse: Você viu o que eu como? Ela disse sim:- É Acará.
Ele perguntou:- E o que é Acará?
Ela disse: - É fogo, Xangô come fogo.
Ele falou: - Só minhas esposas podem saber meu segredo, só minhas esposas comem.
Na verdade não era bem assim, Oxum preparava, mas não comia, ai ele disse: - Você meta sua mão e vai comer comigo agora.
Ela olha o fogo e come o Acarajé, (Jé que quer dizer comer em Ioruba) Acarajé quer dizer comer acará. Sendo assim Iansã passou a comer acarajé e ser uma das mulheres de Xangô.
O Acarajé é comida sagrada e ritual do Candomblé, ofertada aos Orixás, principalmente a Xangô (Alafin, Rei de Oyó) e sua mulher a rainha Oya(Iansã), compartilham também Obá e os Erês nos cultos daquela região.

A Bahia hoje conta com uma plataformaOyá Digital que localiza e traça perfil de 5 mil baianas no Brasil.
O Acarajé hoje é tombado pelo patrimônio...
Foto: Na África, é chamado de àkàràje.
Àkàrà significa bola de fogo e jé possui o significado de comer, logo àkàràje é uma bola de fogo que se come, não podíamos esperar menos de Oyá, Orixá do dendê.


Montar o projeto foi um exercício de muita pesquisa e paciência, com cruzamento de informações e organização de dados por parte do Iphan. O resultado só foi possível graças aos cadastros da Abam, da Secretaria Municipal da Ordem Pública (Semop) e da Federação do Culto Afro-Brasileiro (Fenacab). 

Antes de virar plataforma digital, uma empresa especializada em tratamento e digitalização de acervos realizou a higienização, classificação, catalogação, acondicionamento e disponibilização do arquivo físico de documentos. “Cruzamos os dados de cadastros que estavam em arquivos físicos, em estado precário. Agora está tudo digitalizado”, explica Maria Paula Adinolfi, antropóloga do Iphan, que esteve à frente do projeto.

O nome Plataforma Oyá Digital é uma homenagem ao orixá patrono do ofício de baiana de acarajé - Oyá ou Iansã. No total, 5.261 já baianas entraram no cadastro. Além de permitir sua localização em um mapa, a plataforma dispõe de ferramentas de pesquisa para se obter dados de gênero, cor/raça, idade, religião, tipo de produto produzido, grau de escolaridade e até dias e horários que trabalham.