quinta-feira, 16 de abril de 2015

Pequeno Dicionario da Cozinha Baiana

 Verbete D Dobradinha
Apesar de não ser um prato típico baiano, a Dobradinha, incorporou-se ao calendário das comidas tradicionais da Bahia. E como falar da dobradinha, sem citar as Fateiras, negras de ganho na Bahia oitocentista?


Dobrada, tripa, bucho ou mondongo na verdade, come-se em todo o Brasil, onde alguns chamam de (Comida Ogra, num claro discurso racista e aculturado) , mais uma das heranças do nosso colonizador.
Eles introduziram a receita no século 16, quando chegaram. Trata-se de comida medieval, apreciada em muitos países europeus.
Surgida na cozinha das populações desfavorecidas, que por necessidade alimentar aproveitavam todas as possibilidades dos animais.

Bom lembrar que até o século 17, a população da Vila de São Paulo era formada por mamelucos (filhos de branco e índio) pobres. Alimentavam-se de frutas, peixes, caça, milho, feijão e mandioca. Comer carne de boi – animal introduzido na Capitania de São Vicente, de Martim Afonso de Souza, em 1534 – era um luxo.


Na Bahia, segundo Vilhena( Luís dos Santos Vilhena nasceu em 1744, na vila de Santiago de Cacém, no Alentejo, em Portugal), o professor de grego estava atento aos problemas de escassez de comida, à possibilidade da fome em Salvador, mas não deixou de observar a existência de um ativo mercado interno de alimentos, inclusive no Recôncavo. Apesar da má vontade do professor de grego com seus desafetos, ele estava certo em relação ao deficiente suprimento da população. Era uma rede com regras próprias, que envolvia produtores, intermediários, negociantes, capitães de barcos, lojistas, carregadores, negros de ganho e os próprios administradores do celeiro público.

Portugal, que chama o prato de dobrada ou tripa, como os franceses (tripes à la mode de caen) e italianos (trippa alla romana, alla bolognese, alla fiorentina, alla milanese ou busecca), envolve sua grande receita com .


Uma história com tons romanticos, marca esta grande receita, o infante d. Henrique em 1415, numa das ida ao Porto, fiscalizar os trabalhos no estaleiro onde eram construídas as embarcações para a conquista de Ceuta, na África, cidadela moura, foi surpreendido pela população local, que imbuído de espírito cívico, ofereceu toda a carne bovina de que dispunha para alimentação dos marinheiros, ficando com as tripas.     

Para matar a fome, “inventou” um prato com aquelas sobras. Surgiu uma sopa grossa, a tripa ou dobrada à moda do Porto (os portugueses agora têm receitas diferentes para cada uma), inspiradora do poema homônimo de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, escrito no restaurante Ferro de Engomar, ainda hoje na Estrada de Benfica, em Lisboa: “Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo, / Serviram-me o amor como dobrada fria. / Disse delicadamente ao missionário da cozinha / Que a preferia quente, / Que a dobrada (e era à moda do porto) nunca se come fria”. Além disso, o prato conferiu aos habitantes do Porto o gentílico de tripeiros.   

Fateiras
Como lembra Michelle Perrot, a falta de espaço doméstico próprio impelia a mulher pobre a ocupar o espaço público. No Brasil não era uma exceção. Não havia alternativa à

mulher pobre sozinha a não ser buscar trabalho – qualquer um. Quanto às escravas, essas tinham que obedecer e o trabalho “de portas afora” não era apenas um conforto para a classe senhorial, mas também uma maneira de poupar às mulheres mais abastadas do vexame de ter que freqüentar as ruas por absoluta necessidade.
Na década de 1840, já eram razoavelmente comuns anúncios, tanto de mulheres livres em busca de emprego doméstico como de pessoas procurando contratá-las.
Após a "abolição", se viram sem nenhuma alternativa de sobrevivência, e buscaram ganhar a vida vendendo algumas dessas mercadorias baratas, de porta em porta ou em tabuleiros nas ruas...Quanto às negras fateiras (também não eram apenas mulheres), no caso especificado aqui no poema, foram mulheres que, não tendo como se sustentar nem à seus filhos, começaram a pedir nos abatedouros as vísceras dos animais, que eram descartadas, uma vez que não compunham o cardápio da mesa dos brancos e ou ricos, fazendo com elas deliciosas iguarias. A partir daí, o sarapatel, a buchada, o xixim de bofe, meninico, fatada, entre outros, passaram a compor a nossa culinária, e também a serem incluídos no cardápio das casas senhoriais por causa do seu sabor que, embora exótico, foi considerado delicioso.



"De princesa tornou-se escrava
e fateira altiva elegante
negra bonita negra brejeira
no seu tabuleiro de tanta iguaria 
sarapatel mugunzá fatada abarána 
saia rodada tem barra de renda
na blusa musselina fininha 
e nos dedos dos pés ela tem sandalinha 
no braço e pescoço tem prata tem ouro e o sol do estanho 
o doutor alemão encantado 
dizia não há riqueza de formas como a da negra da Bahia orgulho nagô do reino de keto escrava ou liberta negra fateira negra de ganho negra bonita negra brejeira."

Obs. O poema baseia-se em textos de Robert Ave-Lallemant e Jean-Baptiste Debret.


Apesar do sucesso, a dobradinha não chega a ser unanimidade, no Brasil ou em Portugal. Milhões a apreciam, outros tantos a abominam. Isso, porém, jamais afetou a divindade gastronômica do prato. Sejamos democráticos. 

À mesa também se aplica a estocada sarcástica de Nelson Rodrigues: “Toda unanimidade é burra”.


Leia mais
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0002-05912013000200008&script=sci_arttext

http://www.redalyc.org/pdf/770/77003002.pdf

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