A Associação das Baianas de Acarajé, Mingau, Receptivo e Similares desde 2009,
Rita Santos tem fama de aguerrida. Apesar de carioca, corre azeite de dendê em suas veias, que pode chegar a ponto de fritura quando ela roda a baiana na defesa dos interesses de sua categoria. No embate com a prefeitura de Salvador em questão relacionada à retirada das baianas da praia (determinada pelo juiz federal Carlos D’Ávila), o prefeito ACM Neto lhe pediu uma trégua: “Ele me pediu para parar de dar entrevistas, que precisava de um tempo para resolver”, diz com ares de que o acarajé dele está fritando.
Segundo Rita, a ordem do juiz não é dirigida às baianas, mas à cocção nas areias da praia, o que a indigna: “E os restaurantes na areia? Por acaso não cozinham?”. Uma das dificuldades de fazer frente a esta ordem é que cerca de 80% delas não têm licença da prefeitura – que agora também não se interessa em concedê-las, porque, se não tirar as baianas, é multada. “Se tivessem licença a gente podia brigar mais, a prefeitura tá deixando as que têm licença".
Acusam as baianas de poluir as praias com descarte do azeite, o que Rita nega: “Elas fazem sabão”. Além do que, se fosse este o caso, bastaria conscientizar, engajar as baianas em projetos de reciclagem. “Baiana polui praia? E os esgotos sanitários? Tem baiana há 65 anos no ponto, agora vai tirar ela de lá?”, questiona. Por conta dessa proibição ela levou mais de cem baianas em protesto à porta do Tribunal de Justiça do Estado e foi a Brasília tratar com autoridades, ainda em vão.
Ao ver de fora da Arena Fonte Nova a presença histórica de nossa iguaria, Rita fez chegar às mãos da presidente Dilma petição com mais de 16 mil assinaturas contra a restrição da venda do acarajé no estádio, vindas de inúmeros países. “A cada adesão, na mesma hora Ronaldo Fenômeno, o ministro do Esporte e a FIFA eram instantaneamente copiados. Não aguentaram a pressão”, conta, sem esconder a satisfação.
A ABAM ganhou de 6x0 a contenda com a FIFA, que acabou por autorizar seis baianas na Fonte Nova, devidamente credenciadas e dentro das exigências do órgão, entre elas a de uso de fritadeira elétrica e rígida demarcação de ocupação de espaço, o que muito incomodou Rita: “Ficamos em local de difícil acesso, dentro do estádio se vende cachorro-quente, hambúrguer, pipoca, tudo próximo das arquibancadas, e a gente longe” - situação que espera melhorar até a Copa.
A experiência das baianas com a FIFA levou a ABAM a contar sua história na Colômbia, onde Rita esteve a convite da Fundação ACUA, de promoção da cultura afro e fortalecimento de suas comunidades. Lá ela cozinhou, distribuiu acarajé em feira livre (“Juntou foi gente!!”), fez palestras e surpreendeu políticos de âmbito local ou nacional com sua presença (Célia Sacramento, Tia Eron, Sílvio Humberto, Netinho de Paula, Benedita da Silva, Marta Suplicy...): “Você aqui?”, perguntavam. Sem se intimidar, Rita discorreu sobre suas dificuldades: “Falei da FIFA, da prefeitura, do juiz Carlos D’Ávila, tudo”.
Os embates com a prefeitura de Salvador são constantes, pois, segundo Rita, todas as suas exigências dizem respeito ao atendimento do mercado, não à melhoria das condições de vida das baianas. Numa época em que as forças empresariais são maiores, mais agressivas, essas mulheres enfrentam inúmeros constrangimentos e restrições por parte do Estado, o qual, mesmo reconhecendo seu ofício como patrimônio nacional, pouco faz para garantir a sustentabilidade de uma atividade consagrada, com impacto em diversas outras: feirantes, pescadores (camarão), extrativistas (pimenta, coco, castanha, amendoim, dendê), manufatureiros (produção do azeite), costureiras (indumentária), bordadeiras (richelieu) e outros artesãos (balangandãs)...
Dentre essas e outras preocupações (corte de água na sede da ABAM, constantes ocorrências de arrombamento do Memorial da Baiana), a maior é a ameaça de perderem o título de Patrimônio Imaterial Nacional, que é revisto pelo IPHAN a cada dez anos, o que vai ocorrer em 2015. De acordo com Rita, faz parte dos critérios de análise para manutenção do título o uso da indumentária das baianas, o que muitas têm dispensado, atendo-se ao mínimo de elementos característicos. “O IPHAN diz que a baiana tem de ter bata, saia, torso, não basta dar um ‘toque’, isso é patrimônio imaterial. Quando elas não se caracterizam, perdemos nossa identidade”.
O desemprego tem levado muitas pessoas não relacionadas ao ofício a exercê-lo, distantes, portanto, de seu significado simbólico, mas o maior problema são as evangélicas, que não querem identificação com o candomblé, repudiando inclusive suas próprias origens, já que muitas são antigas praticantes da religião africana, conforme relata Rita: “A maioria das baianas evangélicas era de terreiro, elas mesmas dizem Eu era daquela religião do diabo”. E pondera: “Não precisa ser de terreiro para vender acarajé, mas tem de respeitar a tradição”.
No empenho pela caracterização das baianas e preservação do ofício, ela encontra pouco respaldo oficial. A prefeitura, que em cumprimento a decreto municipal de 1998 deveria fiscalizar se elas estão tipicamente vestidas para “o exercício de suas atividades em logradouro público, de acordo com a tradição culinária afro-brasileira”, além de não fazê-lo, ainda concede licença de funcionamento a baiana não caracterizada. O que levou Rita a entrar com uma ação no Ministério Público em 2009 para cobrar isso do então prefeito.
Rita teme pelo ofício: “Meu medo é que aconteça com as baianas o que aconteceu com a profissão do alfaiate ou do realejo da sorte, que não tem mais”. Por conta disso, elegeu como prioridade da ABAM um plano de salvaguarda do ofício das baianas de acarajé, que envolve a articulação de 28 entidades. Na busca por estratégias para lidar com uma lógica de mercado que tende a dizimar a atividade ancestral pela qual é apaixonada, Rita sonha com conscientizar a população a ponto de só comprar acarajé de baiana paramentada, criando segurança para sua perenidade.
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