quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

A merendeira que reinventou o Abará

A troca acidental de ingredientes do abará, prato típico da culinária baiana, contribuiu para que a merendeira Dejanira de Souza, da Escola Municipal Nossa Senhora das Candeias,
na comunidade quilombola de Praia Grande, na Ilha de Maré, chegasse à final do 1º Concurso Nacional das Melhores Receitas da Alimentação Escolar, lançado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), uma autarquia do Ministério da Educação. 
Os objetivos da competição, que reuniu 2.433 concorrentes de todo o país, são comemorar os 60 anos de criação da merenda nas escolas, valorizar as merendeiras e incentivar a prática de hábitos alimentares saudáveis para os alunos. Dejanira é uma das três finalistas da região Nordeste — as outras duas também são de Salvador — e disputará, nos dias 27 e 28 de janeiro, em Brasília, o prêmio de R$ 5 mil e uma viagem internacional. 
“Será a primeira vez que vou viajar de avião, pense…”, — diz a merendeira, sem esconder o medo de voar.

Leia também: Concurso vai premiar e valorizar profissionais que tenha a melhor receita de merenda

“Pioca (apelido de infância de Dejanira, originário de tapioca) vai nem que seja amarrada”, rebate a auxiliar de cozinha Lúcia Santos Lobo, co-autora da receita finalista. 
Dejanira é merendeira há 14 anos. Antes, trabalhou por três anos como faxineira e ajudante de cozinha na creche que funcionava no prédio da escola 
Este anos, Lúcia prometeu fazer o almoço na festa de aniversário de Dejanira. Decidiu fazer abará, mas em vez de usar a massa de feijão fradinho pegou a de aipim na geladeira por engano. E só deu conta do erro mais tarde.
ANIVERSÁRIO 
Dias depois, a direção do colégio recebeu um e-mail informando o lançamento do concurso nacional, uma espécie de MasterChef da merenda escolar. 

O regulamento estabelecia que só poderia ser inscrito um alimento por escola, feito com ingredientes regionais “para valorizar hábitos locais”. Em reunião na escola Nossa Senhora das Candeias, Dejanira e duas auxiliares, à princípio, ficaram em dúvida entre quatro pratos — moqueca de peixe com pirão de banana, feijão tropeiro de soja, cuscuz nordestino com peixe e farofa especial. Foi aí que Pioca lembrou do aniversário e sugeriu o abará com aipim. Ela também defendeu a troca do camarão seco, ingrediente não disponível na merenda escolar, pela carne bovina (acém). Após consultar a nutricionista da secretaria de Educação, Taís Cardoso de Jesus, o grupo aprovou, por unanimidade, o novo abará. Originalmente, o bolinho de feijão fradinho moído sem casca é cozido em banho-maria, antes de ser embrulhado em folha de bananeira. Feito com a mesma massa do acarajé, tem como ingredientes cebola ralada, camarão seco, tomate, alho, coentro, sal e azeite de dendê. No candomblé, é comida ritual dos orixás Obá, Iansã e Ibejis (crianças), nada mais apropriado. 
ALEGRIA E FÉ 
A notícia de que Dejanira é finalista do concurso nacional aumentou a autoestima dos moradores de Praia Grande. Floricélia Carvalho das Neves, ex-diretora de cinco escolas na ilha, comemora a façanha: “É um motivo de alegria para todos da comunidade quilombola e para Salvador também”, fala orgulhosa. “Estou doido para que chegue o dia 28. Vamos ganhar e receber a placa”, torce o
integrante do conselho de alimentação escolar, Valter Santana. A fé que os moradores da Ilha de Maré põem em Dejanira é justificada: ela tem fama de pé quente e guerreira. “Pioca ganha toda competição que participa”, revela a diretora da escola Clétia Paraguaçu. A última vitória ocorreu no concurso de miss merendeira, em junho passado. Mesmo sofrendo com o zika vírus, derrotou as adversárias. “Estava com as pernas bambas, mas bati cabelo e ganhei”, conta. Dejanira, mãe de três filhos, acredita que pode vencer também em Brasília. E promete caprichar no visual: “Vou comprar roupa nova para ficar bonita no dia da disputa”, promete. 
DA COR DO CÉU 
A escola Nossa Senhora das Candeias não tem letreiro. Pintado em dois tons de azul que se confundem com o ceú, o colégio está enfeitado com uma árvore de natal de garrafas pet no pátio externo. As janelas das salas de aula, onde estudam 177 alunos da educação infantil, do fundamental I (1º ao 5º ano) e da educação básica para jovens e adultos (EJA). A cozinha é arejada e limpa. 
O refeitório é amplo, mas na diretoria mal cabem três pessoas. A nova escola está pronta, mas só será inaugurada quando a orla estiver reconstruída Nos próximos meses, os funcionários e alunos serão transferidos para a escola Ilha de Maré, recém-construída pela prefeitura a 400 metros, na mesma rua. Bem maior, o colégio tem 17 salas, quadra de esporte, laboratório de informática e alojamento para os professores. Praia Grande passará a ter ensino fundamental II (6º ao 9º ano) e médio, o que até agora só existe no continente, obrigando dezenas de alunos a irem para lá em barcos escolares. A data da mudança não foi definida porque as obras de reconstrução da orla, que costuma ser destruída pelo mar, é lenta. 
O acesso ao prédio novo não foi autorizado. “EU VIM DE ILHA DE MARÉ MINHA SENHORA…” Na tarde do dia 10 de dezembro, 15 alunos da escola Nossa Senhora das Candeias participaram de uma oficina para conhecer os benefícios que o abará de aipim com carne traz para a saúde. Eles ouviram da nutricionista Taís Cardoso de Jesus, que o aipim é rico em carboidratos e fibras e dá energia para as crianças. Já a carne tem proteínas que auxiliam no crescimento e na reparação de tecidos. Aprenderam que o azeite de dendê possui vitaminas A e K, importantes para fortalecer o sistema imunológico e agir no processo de coagulação sanguínea. 
O abará tem cerca de 280 calorias em 100 gramas Os alunos ajudaram a preparar o a receita de Dejanira. Depois de provarem o bolinho, festejaram, batendo palmas, batucando e cantando “Ilha de Maré”, de Lupa e Walmir Lima. A música “estourou” em 1977, após gravação da cantora Alcione, mas é líder até hoje na parada de sucessos de Praia Grande. 
 CINCO CAMPEÃS 
A final do concurso das melhores receitas da merenda escolar acontecerá nos dias 27 e 28 de janeiro de 2016. Inicialmente, estava prevista para os dias 17 e 18 de dezembro de 2015, mas foi adiada com a justificativa de que o ministro da Educação Aloizio Mercadante quer participar da cerimônia de premiação. O concurso promovido pelo FNDE reuniu 2.433 concorrentes, sendo que 1.403 passaram pela fase eliminatória. A etapa estadual, que contou com a avaliação dos presidentes dos conselhos de alimentação escolar e nutricionistas, classificou 123 para a fase regional. Outro julgamento definiu as 15 finalistas. Agora, serão escolhidas as campeãs de cada região do país. No Nordeste, as três candidatas são de escolas municipais de Salvador. Além de Dejanira, concorrem Cláudia Antônia Bispo dos Santos, com a receita “Enroladão Saudável”, da escola Francisco Leite, do bairro Águas Claras”; e Lucineide Lira da Silva Araújo, com “Combinado de Dois Sabores”, do colégio Batista, em São Caetano”.

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