"Há um gosto todo especial em fazer preparar um pudim ou um bolo por uma receita velha de avó. Sentir que o doce cujo sabor alegra o menino ou a moça de hoje já alegrou o paladar da dindinha morta que apenas se conhece de algum retrato
pálido mas que foi também menina, moça e alegre. Que é um doce de pedigree, e não um doce improvisado ou imitado dos estrangeiros. Que tem história. Que tem passado. Que já é profundamente nosso. Profundamente brasileiro. Gostado, saboreado, consagrado por várias gerações brasileiras. Amaciado pelo paladar dos nossos avós."
Gilberto Freyre
Por: Mariana Lacerda
Os cadernos de culinária contam um pouco da história de cada um, afinal trocar receitas também é um ato de contar histórias.
Ao contrário do que se pensa, os primeiros livros de receitas não surgiram em decorrência dos cadernos.
Os livros vieram antes. O primeiro de que se tem notícia chama-se "Auspicius Culinaris".
Surgiu ainda na Idade Média e compreendia um conjunto de receitas reunidas por Auspicius, um festeiro e gourmet dos arredores de Roma, na Itália.
Mas o livro de receitas tal qual o conhecemos, com ingredientes, quantidades, modos de fazer e ilustrações, foi uma invenção de chefes de cozinha das cortes reais européias, cuja preocupação era conservar as normas de fazer dos manjares, para que futuros chefes de cozinha seguissem o ritmo impecável dos sabores consagrados pelas cortes.
No Brasil, os primeiros livros de receitas vieram parar aqui com a chegada da família real, em 1808, que trouxeram ainda utensílios e alguns ingredientes de cozinha.
Aos poucos, a cultura européia da cozinha foi sendo adaptada às condições tropicais da nossa terra.
Com o passar do tempo, os portugueses começaram a ensaiar combinações corajosas na culinária e foram adaptando ao seu sabor, ingredientes brasileiros. Na falta de trigo, tentaram usar a mandioca; no lugar da castanha portuguesa, incluíram a castanha de caju.
Apenas a partir do fim do século XIX, surgem no Brasil os primeiros cadernos de receitas propriamente ditos. Foi quando as mulheres passaram a ser alfabetizadas. As receitas, antes uma tradição oral, começaram então a ser anotadas. Tudo obra de avós ou mães que, ao arrumar o enxoval das filhas ou netas prestes a sair de casa, incluíam como item essencial um caderno repleto de receitas.
Eles representam um legado daquilo que foi apreendido pelo gosto da família. A tal ponto de surgirem iguarias com nomes de famílias, algumas tão antigas quanto os clãs que lhes deram origem.
Algumas famílias guardavam a sete chaves a receita de pratos tradicionais, que às vezes levavam o sobrenome de quem os criou. É o caso do "bolo Souza Leão", por exemplo, cuja fórmula foi guardada em segredo pela família homônima, de Pernambuco, por muito tempo. Sua receita - basicamente mandioca, ovos e muito açúcar - soa como um eco do passado, dos tempos em que, nas casas grandes dos engenhos de cana no Nordeste, sinhazinhas e mucamas iam preparar o doce colocando na mesma panela receitas portuguesas misturadas aos produtos da terra, como o coco e a mandioca.
Em seu livro "Nordeste", o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre diz que essa e outras receitas demoraram a ser popularizadas.
"Não só pela sua natureza complexa como pelo ciúme de sinhás donas ilustres que conservam as receitas dos velhos bolos como jóias de família", escreveu Freyre.
Com o passar dos anos, e em conseqüência do troca-troca de receitas entre famílias e amigas, elas ganharam as páginas dos jornais e revistas e viraram inclusive livros. O segredo do "Souza Leão" passou a ser, definitivamente, conhecido pelo Brasil inteiro no clássico "Açúcar - Uma Sociologia do Doce", escrito por Freyre e publicado pela primeira vez em 1939.
O popular livro de receitas brasileiro "Dona Benta", foi publicado pela primeira vez em 1940 e chegou, ano passado, a sua 76ª edição. Trata-se de uma das publicações de cozinha mais vendidas no Brasil, com cerca de mil receitas atualizadas e coletadas junto às famílias tradicionais brasileiras.
Sim, cadernos de receitas representam a memória culinária de nossas famílias, seus traços afetivos. São ferramentas para se observar a vida cotidiana do nosso passado e presente. Isso já faz dos escritos culinários, por si só, narrativas preciosas. Um patrimônio. Escritas que nos permitem olhar a comida antes de ela existir e acariciar a idéia de saboreá-la.
Mas, vale dizer, a receita de um prato jamais será uma fórmula exata para se chegar ao mesmo resultado sempre.
Porque na culinária, como na vida, conta muito o que não pode ser expresso em palavras: a experiência de quem cozinha, a intuição usada na hora do saber fazer, os pequenos segredos. "Quinhentos gramas de farinha ,menos duas colheres. Depois, esticar a massa até ela ficar da grossura de um papelão", dizia minha avó, se referindo ao seu truque para que a massa do bolo-de-rolo jamais quebre em suas mãos.
Ah... só que isso não está na receita, não.
Leia também: Livros e cadernos de receitas familiares testemunham hábitos e afetos femininos em torno da cozinha
Aconteceu no Museu Alfredo Andersen, entre os dias 13 a 16 de outubro de 2015, a I Mostra de Cadernos de Receitas das Vovós, e ficou em cartaz até 25 de outubro.
A mostra foi composta por uma seleção de cadernos manuscritos de receitas, organizado pela Ceasa Paraná e Slow Food Pró-Vita de Curitiba.
O evento fez parte da Semana Mundial da Alimentação,e teve o objetivo da semana é promover a reflexão sobre o consumo consciente e estimular práticas de não desperdício de alimentos.
*Museu Alfredo Andersen
Rua Mateus Leme, 336, São Francisco. Curitiba-PR
Fone (41) 3222-8262 | (41) 3323-5148
Visitação: de terça a sexta-feira, das 9h às 18h.
Sábados e domingos, das 10h às 16h
www.maa.pr.gov.br | maa@seec.pr.gov.br
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