Recôncavo terra de matriarcas
Difícil falar do Recôncavo sem lembrar das grandes mulheres deste lugar, todas elas deixaram marcas fundamentais na cultura, traços profundos na historia do candomblé, alem de serem as responsáveis por manter as tradições, simbolo maior de resistência e beleza.
Gaiaku Luiza, Virgínia Rodrigues, Edith do Prato, Nicinha do Samba, Dona Canô, Dona Dalva, Mãe Filhinha e tantas outras mulheres, serão sempre as grandes homenageadas nesta festa que vamos dar inicio apartir do dia 29, na Flica com a presença do Chef Alicio Charoth e sua cozinha Sotoko, no Identidade Brasil
Quem não provou as receitas de dona Canô?
Mãe de Caetano e Bethânia guardava um rico patrimônio culinário
Dona Canô morreu como viveu: da forma e no lugar que escolheu. “Estou indo para o céu”, disse, dias antes, a um vizinho. Matriarca não apenas de sua família, mas da cidade banhada pelo Rio Subaé, que tanto lutou para despoluir, Claudionor Viana Teles Velloso foi a guardiã dos costumes do Recôncavo Baiano. Tanto de sua fé como de seu imenso e particular patrimônio culinário.
“Ao contrário do resto da Bahia, o Recôncavo ainda mantém as tradições da comida de azeite, da comida tradicional”, me disse, aos 98 anos, diante de uma fatia de bolo de limão que compartilhávamos, sentada numa poltrona de veludo grosso sob uma grande foto de Maria Bethânia na parede.
“Quando tem um almoço, vou provar, saber como está. Mas quem faz tudo com gosto e prazer é a Isaura”, dizia ela, sobre sua escudeira há mais de 40 anos. “Azeite de dendê, camarão seco, castanhas e leite de coco não faltam. Nem as frutas frescas para sucos e doces. Sempre tenho farinha de mandioca da feira, que
Caetano e Bethânia adoram, ou os mariscos que Mabel tanto gosta”, explicou, em referência à filha que, por sinal, reuniu as receitas da mãe no livro O sal é dom - receitas de mãe Canô (Melhoramentos).
Apesar das predileções, nenhum dos filhos tinha privilégios à mesa. Nem os famosos. “Não tinha esse negócio de Caetano e Bethânia quererem isso ou aquilo, não. O que um comia, todos comiam”, disse ela, lembrando que, provedora, a mãe precisava cozinhar em grandes quantidades para os oito filhos e muitos agregados da casa de quintal e corredores compridos.
Aos 85 anos, dona Dalva Damiana dos Santos é o que podemos chamar, sem medo de ser marketeiro, de matriarca. É guardiã e reprodutora do samba de roda do Recôncavo Baiano. Já fez participações em shows e DVDs de Gil e Beth Carvalho, mas não larga Cachoeira, a cidade-joia do Recôncavo onde mantém suas rodas uma vez por semana. Tem a autoridade dos grandes.
Neta de escravos, preta altiva, aprendeu com a avó a fazer outro tesouro do qual é também guardiã: a maniçoba. É com essa comida ancestral, mistura de técnicas indígenas e portuguesas retemperadas pela mão africana, que Dona Dalva alimenta o povo do samba – e o povo da sua cidade.
Não é comida simples. Longe disso. Como uma feijoada, o prato leva carnes de porco e demais embutidos. Mas nada de feijões. A base é feita de folhas de mandioca brava trituradas e cozidas.Acabou por aí? Qual nada!
Venenosas, as folhas possuem ácido cianídrico que, se não eliminado, pode matar o comensal.“A folha tem uma maldade, se a gente não tirar a maldade dela, ela mata a gente”, diz dona Dalva. São quatro ou cinco lavagens de água quente até o veneno sair. Depois, um a um, os ingredientes, no total de mais de 24 horas de preparo até tudo virar uma grande pasta verde ocre com sabor das carnes. Coisa da época em que éramos obrigados a transformar o incomível em comível. Hoje, elemento de prazer e peça de identidade.
Gaiaku Luiza que é bisneta de africano e foi nascida e criada dentro do candomblé aonde chegou a morar dentro da Roça de Ventura. Teve contato com as velhas tias do candomblé que lhe ensinaram muita coisa. Em 1937 Gaiaku Luiza é iniciada para Oyá na nação ketu, no Ilé Ibecê Alaketu Àse Ògún Medjèdjè, do famoso Babalorixá Manoel Cerqueira de Amorin, mais conhecido como Nezinho de Ògún, ou Nezinho da Muritiba, filho-de-santo de Mãe Menininha do Gantois. Por motivos particulares, após 2 anos Gaiaku Luiza se afasta da Roça deste ilustre Babalorixá. Foi Sinhá Abali, segunda Gaiaku a governar a Roça de Ventura, quem viu que Gaiaku Luiza deveria ser iniciada no Jeje, nação de toda sua família, e não no Ketu. Assim, encarrega sua irmã-de-santo Kpòsúsì Romaninha, de sua inteira confiança, a iniciar Gaiaku Luiza no Terreiro Zòògodò Bogun Malè Hùndo, em Salvador. Em 1944, Gaiaku Luiza é iniciada na nação Jeje sendo a terceira a compor um barco de 3 vodunsìs. Seu barco foi constituído por uma Osún, um Azansú e uma Oyá.
Gaiaku Luiza foi uma das poucas Vodunsìs, na Bahia, que ousaram abrir uma roça de candomblé jeje-mahi. Isso ocorreu em 1952, num período em que não era comum tal prática dentro do culto jeje. Na época, supõe-se que existiam somente dois terreiros jeje-mahi na Bahia, que eram o Zòògodò Bogun Malè Hùndo (Terreiro do Bogun), em Salvador, e a Roça de Ventura (Sejá Hundê) , em Cachoeira. Com a autorização e participação de sua mãe-de-santo Kpòsúsì Romaninha, dona Luiza abriu um terreiro jeje-mahi, tornando-se, então, uma Gaiaku.
Texto extraído e readaptado do livro “Gaiaku Luiza e a trajetória do jeje-mahi”, escrito por Marcos Carvalho (Mejitó Marcos de Gbèsén), filho de santo de Gaiaku Luiza.
Foto: Gaiaku Luiza, sacerdotisa do candomblé jeje, em Cachoeira, com o percussionista Nana Vasconcelos