sábado, 30 de maio de 2015

Iuri frigoleto sem reservas no Bate&Leva.

Sensível e observador, Iuri Frigoletto, trabalha numa perspectiva clara e nada vulgar que se perdeu com o tempo, a de avaliar com clareza as coisas ao seu redor, honesto em suas observações quanto as cozinhas 
regionais, não deixa pedra-sob-pedra ao falar da importância deste legado e suas implicações. 
 
Intimamente ligado a gastronomia, por questões afetivas, não poupa críticas aos retrocessos vistos nos últimos meses com a derrota no congresso sobre a rotulagem do transgênico, ao agronegócio os lobes do capital e fixa sua navalha irônica sob os neo-gourmet eco-chatos e seus maneirismos. 
Artista plástico, trabalha com diversas linguagens, (fotografia, gravura, cinema) e com a madeira (mobília e arquitetura), mostra-se doce e terno nas recordações afetivas em família.

Carioca, cosmopolita e inquieto, com uma leitura ativa sobre o seu momento e clara sobre todo processo lento e difícil de estabelecer novas bases sustentáveis para consolidar a nossa gastronomia.

Provocação:Como você compreende Gastronomia, da forma que esta posta hoje, te inspira poesia?
Iu.O que mais me inspira hoje é a culinária regional, ou as culinárias regionais que formam um grande todo, os saberes, que são a cultura do alimento, fundamental para conhecer um povo, sua história, sua identidade e a gastronomia como conceito de aprimorar uma receita. “Requintar” um prato já não é mais interessante para mim, foi no tempo em que morei em Nova York quando cozinhava em restaurantes razoavelmente sofisticados enquanto
estudava Artes Visuais.
Foi como um desafio à técnica.  Quando voltei para o Brasil, com o tempo, fiquei cada vez mais interessado no que a cultura local, popular, é capaz de desenvolver. Esta sim é fonte de poesia.

El. Referências de algum Chef ou restaurante que admira o trabalho:
Iu. Esta é uma boa pergunta vinda de você! Há 16 anos fiz uma série de viagens à Bahia em busca de entendimento sobre o Brasil, fotografando e cozinhando por onde  passei. Na época, foram 4 a 5 meses no total, foi quando eu conheci a cozinha do Maria Mata Mouro, conheci você, Alicio! O tempero Baiano. A partir daí, em um processo intuitivo, comecei a perceber a cozinha regional.
Fui assistente de fotografia do fotógrafo Marcelo Faustini no Rio de Janeiro, que é excelente chef de cozinha também.
Depois veio NY, Europa, Istanbul. Em NY fui assistente de arte de um pintor de Israel, Benjamin Levy, que também cozinhava muitos pratos do oriente médio - e conheci o trabalho de vários chefes mundialmente conhecidos.
Nessa época parti do Brasil para outros países com essa interrogação e provocação na cabeça, onde começa o tempero popular e a lapidação gastronômica dos alimentos, dos pratos, onde exatamente surge a “arte” da cozinha...ainda como condições apartadas..e depois entendi.
A culinária, a gastronomia tem condições cumulativas, portanto estas são aditivas ao saber, a cultura.  
Mas como resposta objetiva, achei muito importante o Alain Ducasse declarar que vai diminuir ou eliminar o consumo de carne no seu restaurante - assim como diminuir o consumo de creme de leite (estamos falando de um chef francês basilar da nouvelle cousine). Não sou vegetariano, mas estes consumos devem ser melhor pensados e criticados. Achei também incrível o projeto que o NOMA, restaurante dinamarquês, considerado o melhor do mundo, abriu em La Paz, Bolívia e desenvolveu arranjos locais com diversos pequenos produtores de alimentos.  

El. Comida da mamãe (que mais gosta em casa) ou Comida que não passa sem?
Iu. A comida da casa da mãe que me faz lembrar da avó...acho que é a saudade. Sinto muita saudade de quando minha família, avós, meus pais, tios, tias, primos, primas, de todos os lados sentavam a mesa, sem televisão ligada, conversávamos e comíamos a comida caseira, a melhor comida do mundo. Mas o modelo de vida e consumo, de forma lamentável, mudou muito os hábitos alimentares. Trazendo as refeições rápidas, instantâneas, trouxe o modelo norte
americano para a nossa mesa que já foi muito mais rica e já há algum tempo perde espaço, de forma paradoxal, para produtos alimentícios nocivos a saúde.

Bate&Leva.:

El. Se pudesse sentar a mesa com Iuri Frigoletto,  o que lhe perguntaria?
Iu. Vixi..tive que pensar bem nessa resposta. Mas como é um bate e leva e gosto de pensar em um espelho, na imagem refletida, deixo uma provocação para você também.. Eu, Iuri, perguntaria a mim mesmo: “O que você, meu caro Iuri Frigoletto, vai fazer com tudo o que você aprendeu até hoje sobre cozinha? Hum...??”

El.Acha que o mercado cresceu e as pessoas estão mais conscientes em termos do que é uma "boa alimentação"?    
                     
Iu. Hummm...tenho dúvidas sobre isso, pois ao mesmo tempo que vemos diversas publicações, programas, restaurantes etc. falando disso, o Brasil aumentou de forma exponencial o nível de obesidade, inclusive infantil. O Congresso Nacional, nos últimos anos aprovou uma série de leis quanto aos transgênicos e ao Código Florestal que representam um grande retrocesso. 
A Kátia Abreu é Ministra da Agricultura ao mesmo tempo em que é latifundiária e ruralista (leia-se a favor do agronegócio e do desmatamento) autora da pérola: “Qual o problema do rio Amazonas ser poluído? O rio Sena em Paris também é...”. Mas nem tudo está perdido..por enquanto.. 
El. Acaba de passar no Congresso Nacional a emenda que acaba com a exigência do símbolo da transgenia nos rótulos dos produtos com
organismos geneticamente modificados (OGM). Como vê esta medida?                      
Iu. É assustador pensar que, neste item,  estamos na contramão dos movimentos que desenvolvem uma alimentação saudável. Diversos pesquisadores e cientistas no mundo declarando o perigo do uso dos OGMs para a saúde, não sabemos ainda qual o impacto disto na saúde pública.
Os pequenos produtores, a agricultura familiar, a agroecologia é absolutamente oprimida, vitimas de perseguições e ameaças pelas transnacionais que produzem os OGMs e os defensivos químicos, chamados agrotóxicos,  necessários a sua produção.
A terra, o solo, os animais, a água e o ar são contaminados e mortos com a produção dessas sementes transgênicas e o Congresso Nacional é conivente. 
Também fico impressionado com a inserção da soja no circuito vegetariano e vegano.
A soja (transgênico da agroindústria), estranha e curiosamente, ficou conhecida como “a carne que não faz mal”, “carne de soja” etc. E pensar que no Brasil a região produtora de soja transgênica, onde somos um dos maiores produtores do mundo, é a mesma onde produzimos carne bovina, onde somos um dos maiores produtores do mundo.
Conhecendo um pouco da hegemonia do capital, dá para imaginar de onde veio essa benevolência com a soja transgênica. Até a Sadia vende almôndegas de soja! Outro exemplo: a indústria cervejeira de larga escala, produz cerveja a base de milho transgênico e arroz. E por trás disso está a Monsanto e seus sócios locais.

El.Na Bahia, precisamente no Recôncavo, temos um patrimônio que são os"Fumeiros", uma técnica que vem sendo desenvolvida ali, há séculos, mas seguem proibidos pela saúde publica e a policia do estado. Acha que os estados devem promover a inserção deste patrimônio, ou simplesmente punir levando a extinção deste bem gastronômico?
Iu. O problema é exatamente este. Não há o entendimento de que isto é memória, é história, portanto, em algum nível, patrimônio histórico imaterial (que tecnicamente deve ser definido entre especialistas e órgãos competentes).
Mesmo se trouxermos um argumento mais recente sobre o não uso da carne vermelha - mesmo assim - o tema deve ser debatido de forma clara. Pois se é prática popular há séculos, é emprego, é cultura, é hábito, é identidade, é memória. Foi assim que a humanidade construiu o seu conhecimento.
A Espanha tem o roteiro do chorizo que movimenta milhares de pessoas, turistas e empregos. Já a França, a Alemanha, a Itália, diversos negócios ligados a boulangerie. Temos diversos exemplos para citar, inclusive na América Latina - mas ao invés disso, mantemos os fumeiros na ilegalidade, o que aumenta o risco de contaminação, o subemprego, não há o controle sobre o tratamento dado aos animais e o mais importante: não há o registro como memória daquilo que é cultura.
Sem o registro não há o entendimento e sem isso não é possível entender até onde essa prática vai, não impede a produção ilegal já que é hábito e assim voltamos ao início dessa pergunta e resposta. O debate deve ser aberto e com respeito à cultura popular.

El. As preferências alimentares são uma das principais bases das identidades culturais. Como vê este momento, onde muitos do nossos
famosos Chefs voltam a valorizar e prestigiar pratos e produtos locais?
Iu. Fundamental. Esse foi e é o movimento que levantou, resgatou e inseriu culinárias regionais. Porem, isto deve sempre ser lembrado e esclarecido para o cliente que vem ao restaurante. Não aguento neo gourmets chamando Tilápia de Saint Pierre com sotaque francês, por exemplo, ou eno chatos fazendo comentários sobre vinhos o
tempo todo sem que ninguém peça, cerveja gourmet (leia-se artesanal ou de pequena escala) ou qualquer coisa que o valha. Devemos ter orgulho em consumir um alimento que veio do índio como a tapioca, métodos de cocção populares, a influência negra na culinária brasileira, ou as tantas influências dos imigrantes portugueses, espanhóis, italianos, sírios, judeus, japoneses, chineses, alemães, suíços, poloneses etc. Devemos dar o entendimento de que antes de um alimento tronar-se um prato caro em um restaurante em SP este alimento foi trabalhado por séculos pelos povos que habitam essa terra, desenvolvidos inclusive como reação e sobrevivência a precariedade da vida em alguns períodos e regiões.

El. Como fazer para conscientizar as pessoas da importância dos Orgânicos?
Iu. Os orgânicos estão no topo da cadeia da boa alimentação, não estão sozinhos, mas estão, junto com a alimentação crudívora, em minha opinião. Porem o alimento orgânico tem uma grande batalha que é a indústria do alimento, o alimento processado, ultra processado etc. Este segmento tem muito dinheiro e poder.
Temos que considerar também a importância da agricultura familiar na produção dos orgânicos, a importância da agroecologia, a extrema importância do pequeno produtor rural. Devemos priorizar o consumo do produto orgânico do pequeno produtor local, pois se não, estes serão engolidos pelos grandes grupos que vendem em uma prateleira o alimento orgânico e na outra o produto alimentício transgênico, com gordura hidrogenada, sódio, etc tratando o orgânico de forma oportunista, como mero segmento de mercado.
Em oposição a isso o pequeno produtor rural luta, literalmente, com toda resistência que esta palavra tem, para manter as sementes crioulas, as sementes originárias dos alimentos.

El. Acha que ainda somos gastronomicamente falando colonizados, ou melhor, já estamos seguros que a nossa culinária é fruto da nossa historia? Ou tudo isso é uma tendência? 
Iu. Parece-me que ainda não há essa consciência. É importante entender que nossa história deu-se a partir de um processo de expansão de mercados, dentro de um processo de expansão e exploração capitalista na sua origem. Depois veio a
colonização que produziu também um mercado consumidor.
Portanto somos colonizados de origem pelos europeus e posteriormente com forte influência norte americana nos nossos modelos de consumo o que influenciou a produção e consumo dos alimentos. Temos que ser muito cuidadosos com isso.
Porem o que acho incrível sobre isso é que os colonizadores também foram influenciados pela cultura indígena e africana alem das trocas de alimentos com diversos territórios do globo que ocorreram durante as expedições marítimas.
Vivemos um tempo onde há uma valorização do alimento saudável em alguns grupos sociais ao mesmo tempo em que somos impregnados pela cultura de massa, de consumo rápido, com alimentos nocivos ao ser humano, aos animais, ao planeta. O que é o maior paradoxo que consigo perceber é que vivemos um modelo onde destruímos para produzir alimento... É inacreditável isso.

El. Quais as percepções de um artista/cozinheiro sobre o que vem acontecendo no campo?
Iu.  Percebo que temos que trabalhar o sensível, a cultura, a arte junto com as questões políticas.
Eu que nasci na cidade e sempre frequentei o meio rural sempre tive aí a síntese dos conflitos e das
soluções. São memórias incríveis e ao mesmo tempo de sofrimento do povo que trabalha cada grão germinado na terra. Talvez seja, se não a maior, uma das maiores percepções de origem.
O que eu vejo de melhor hoje são os projetos de apoio à agricultura familiar, a arquitetura vernacular das casas de estuque, pau a pique e de outros saberes e, com tudo isso, a conservação da memória ancestral do alimento.
Ao mesmo tempo fico assustado ao ir a um mercado em uma pequena cidade e encontrar o mesmo produto alimentício que encontramos nas grandes cidades, com preços similares – ou ainda - perceber que os alimentos plantados em uma região vão primeiro para um ceaasa, são negociados e depois retornam para a mesma região onde foram plantados para serem comprados no mercado local. O que parece uma piada. Precisamos de arranjos locais! Nesse sentido gosto muito do que vejo em projetos como a Casa dos Saberes em São Pedro da Serra/RJ ou a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos.

El. Como vê a participação das mulheres na gastronomia hoje, ou isso continua
sendo um território o masculino?
Iu. Uma vez conversando com uma amiga, a Natália Almeida, que trabalha com grupos de famílias de agricultores, ela apontou para uma trajetória não linear que a mulher ocupa nos afazeres do campo. Conversamos isso enquanto cozinhávamos. Pensei nisso sobre a cozinha. A gastronomia. Sempre que fui a restaurantes onde a mulher ou as mulheres eram as chefs tive a impressão de uma dobra nas minhas percepções, nos meus sentidos.
Talvez seja aquilo que não consigo entender por ser homem. Sempre provo algo que eu não faria, tipo: tapioca, com caqui, queijo, alecrim e ameixa....ficou uma delícia, mas vai entender..e elas me ensinaram lições muito importantes na cozinha. Na arte é assim também com o trabalho de mulheres artistas.

El. Que  te faz brilhar os olhos com seu trabalho?
Iu. As possibilidades de transformação, de criar novas percepções, de inserir ideias mais sensíveis no cotidiano e expandir o pensamento e os sentidos. Temos que trabalhar isso para viabilizar novas perspectivas.

Edição e revisão de texto: Flavia Harpaz
Fotos: André Lavaquial (IURI_3D), Flavia Harpaz e Tarsilla Alves.

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