segunda-feira, 4 de maio de 2015

Por uma Sociologia da Alimentaçâo Entrevista com Carlos Alberto Dórea-Revista Coletiva

Por Clarissa Galvão

Carlos Alberto Dória

A alimentação e a gastronomia como objetos de pesquisa sociológica são o tema da entrevista concedida pelo pesquisador Carlos Alberto Dória. Sociólogo, formado pela Universidade de São Paulo (USP), com doutorado e pós-doutorado em sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Dória é colaborador de jornais e revistas no Brasil e no exterior e diretor da ONG C5 – Centro de Cultura Culinária Câmara Cascudo. Entre seus livros publicados estão “Formação da culinária brasileira” (2014) e “A culinária materialista” (2009).
Coletiva - A primeira coisa que eu queria que você falasse é sobre como a reflexão a respeito da comida, da alimentação e da gastronomia surgiu na sua trajetória acadêmica.

Carlos Alberto Dória - Olha, eu acho que a reflexão sobre a comida, sobre a sociologia, apareceu de um modo marginal na minha vida, na medida em que eu fui sócio de restaurante nos anos 80, 90, e você não deixa de ser sociólogo porque está lidando com os aspectos práticos da alimentação, não é? E daí foi constituindo essa área de interesse, eu fui lendo, fui estudando um pouco. E eu acho que também percebi que aí havia uma lacuna de reflexão no Brasil, pelo menos, onde a gastronomia, por exemplo, ainda é considerada uma frescura, não é apoiada, as pesquisas não são apoiadas pelos órgãos públicos. Então eu segui por esse caminho, exatamente pelo ineditismo disso no Brasil.

Eu queria que você comentasse um pouco os principais argumentos ou a principal tese que você construiu a respeito da formação da culinária brasileira.

Aquela reflexão do livro “A formação da culinária brasileira” eu fiz originalmente para cozinheiros estrangeiros. O Senac me pediu pra eu fazer uma palestra para os chefs espanhóis que vieram aqui para um encontro em São Paulo. Então eu procurei dar uma interpretação pensando nesse tipo de profissional. E, portanto, relativizando alguns mitos que são muito comuns no discurso culinário, principalmente nos órgãos de turismo, que é essa coisa de uma culinária feita pela miscigenação culinária, no caso, entre índios, negros e brancos. Chamando atenção, portanto, para a universalidade das técnicas ocidentais; chamando atenção para a condição social do escravo, que não é exatamente uma posição que lhe permita influir decisivamente nos rumos da culinária. Afinal, os escravos só comem uma ração que os senhores lhes destinam. Quer dizer, a influência do negro passa a surgir, portanto, especialmente a partir da abolição. 
E particularmente em Salvador, onde a presença negra é muito grande. E também o aspecto político da dizimação dos índios, quer dizer, os índios pouco contribuíram no sentido dessa tese vulgar. Que é uma tese que despolitiza todo o processo e esquece as condições sociais em que se formou a culinária brasileira. Então foi essa a ideia, chamar atenção pra isso. Depois, eu fiz esse livro para a Publifolha. Agora eu estou expandindo o ensaio, ele vai sair publicado em breve pela Editora Tapioca (a nova edição foi publicada em 2014).

Em um país com proporções continentais como o Brasil, com diferenças regionais bem marcadas, onde houve uma ampla miscigenação, como seria possível falar de uma identidade nacional em torno da gastronomia?

É curioso porque eu acho que nesse panorama de discussão, desta identidade culinária nacional, eu acho que eu sou uma voz divergente porque acho que isso é uma bobagem, não tem sentido, entendeu? Eu não vejo uma culinária nacional como um nível simbólico importante pra população. Eu acho que as pessoas comem as várias culinárias locais, regionais, sem pensar na filiação simbólica ao estado, à nação. Você pega, por exemplo, o caso da feijoada. A feijoada é um mito de intelectuais, não é um grande prato nacional. O churrasco é o grande prato nacional. Quando você termina a construção de uma casa ou a laje, você faz a festa da laje com churrasco, você come churrasco do Rio Grande do Sul ao Acre, quer dizer, a celebração em torno da carne bovina é muito maior do que em torno do feijão. No entanto, os órgãos oficiais, principalmente aqueles que se preocupam com o patrimônio imaterial, etc, vivem criando símbolos nacionais e símbolos regionais, cuja utilidade eu não sei qual é. Para quê isso? Para estar em sintonia com a Unesco? Tudo bem, isso é importante pra política federal. Para destinar recursos de pesquisa? Isso é importante pra alguns intelectuais. Mas não acho que seja uma coisa importante para a vida das pessoas. Existe uma pesquisa sobre comida tradicional nas grandes regiões metropolitanas, feita pela professora Lívia Barbosa, você deve conhecer, ninguém come comida tradicional. Isso é um mito, não é? É uma discussão que eu acho que não tem a menor importância.

Do ponto de vista da gastronomia moderna, você acha que discutir uma identidade brasileira faz alguma diferença do ponto de vista político, para colocar o Brasil no mapa do mercado gastronômico mundial?

Eu acho que é exatamente nesse plano que essa discussão se dá. Por que que o estado começa a se empenhar nessa coisa de culinária? Agora a Embratur, que é um paquiderme político, começa a se envolver nessa coisa de culinária, por quê? Exatamente porque percebeu que é um tema importante na competição internacional, na competição pelo quê? Por turistas, para construção de destinos turísticos etc., então ela participa, começa a participar ativamente da formação desse mito de que temos uma culinária rica, que temos uma culinária de vanguarda etc., uma culinária tradicional. Enfim, tentando criar um interesse internacional dos turistas, obviamente, não dos cientistas, nessa diversidade que evidentemente o Brasil tem. Eu acho que isso tem sentido nesse terreno de competição entre países do ponto de vista do simbolismo que ainda existe no conceito de nação.

Como o Estado poderia intervir de modo inteligente e eficiente para contribuir para o desenvolvimento da diversidade gastronômica brasileira em sentido amplo e das práticas e produtos da culinária nacional?

O que me interessa é que se reconheça a culinária, a gastronomia como um objeto social válido e, digamos assim, maduro e que merece atenção como outros. Se você quer estudar moda, você tem aí, vamos dizer, vários mecanismos públicos e financiamento etc. Se você quer estudar gastronomia, é muito difícil, não é? Então é nesse sentido. Acho que falta investimento público no conhecimento desse fenômeno social novo, que é a hiper valorização da gastronomia, da culinária através da gastronomia. Eu acho que o Estado está omisso nesse processo. Agora você mencionou também o papel do Estado como entrave do desenvolvimento da culinária nacional, que é diferente da gastronomia. No caso do leite cru. Isso também eu acho que é uma coisa visível e que faz parte desta, vamos dizer assim, deste contraditório que sempre é a esfera pública. 

Por um lado você tem a Embratur querendo faturar mais com o turismo gastronômico, por outro lado, você tem os órgãos sanitários inibindo o desenvolvimento de uma culinária que tem por base alguns produtos tradicionais como o leite cru na forma de queijo, entendeu? Então este último aspecto eu acho que é mais permanente, porque ele diz respeito à cidadania, não é? 

Eu tenho o meu direito de comer o que eu bem entender. O Estado talvez tenha a obrigação de advertir sobre os riscos, mas não tem que me impedir de comer. No entanto, essa tem sido a norma, um “babysitterismo” do Estado brasileiro, que considera todo mundo criança: não, você não pode comer isso porque pode fazer mal, entendeu? Então eu acho que esse tipo de restrição fala do tipo de Estado que nós estamos montando. Mais calcado, digamos assim, numa ideia de cidadania norte-americana do que da cidadania clássica europeia. E que limita muito o arbítrio do cidadão.

Eu queria que você me falasse um pouco do C5, o Centro de Cultura Culinária Câmara Cascudo. Como essa ONG surgiu e quais são os seus principais objetivos e pesquisas?

Na verdade, surge de um grupo pequeno de chefs e de acadêmicos, no qual esses chefs apresentavam como demanda, um certo auxílio pra pesquisar alguns fatos da culinária. E por outro lado, vamos dizer, de um universo acadêmico que iria ter um contato maior com os chefs, né? Então nós fizemos essa ONG, cujo objetivo é exclusivamente a produção, sistematização e difusão de conhecimentos relativos à culinária brasileira. Nós não temos nenhuma intenção de promover a culinária brasileira comercialmente, seja no Brasil ou no exterior, não temos nenhum objetivo comercial, assim, procuramos ocupar esse nicho dessa perseguição entre a produção de conhecimentos e a difusão, que possa fazer convergir esforços de estudiosos, não só acadêmicos, jornalistas e tudo, com esforços de pesquisadores empíricos, que são cozinheiros. Então, isso tem se expressado primeiro numa atividade de discussão e difusão cultural mesmo. O segundo objetivo foi formar uma plataforma de experimentação para os chefs, quer dizer, workshops ou trabalhos com ingredientes e coisas do gênero, e que tem evoluído para a gente montar uma cozinha experimental. Então a ideia é essa, quer dizer, ir tateando esse território, como se formam novos conhecimentos, procurando responder de forma prática a essas necessidades, construindo convergências e difundindo o que já existe sobre a culinária brasileira, então o uso de conhecimento que a sociedade gostaria de ver de maneira mais presente no discurso atual sobre a culinária e a gastronomia.

Por último eu queria ouvir um pouco a sua opinião e a sua avaliação sobre a produção das ciências humanas (especialmente da sociologia e da antropologia) em torno da alimentação, da culinária, da gastronomia no Brasil.

Eu acho que já mencionei isso na falta de financiamento público pra isso. Eu acho que do ponto de vista da lógica do sistema universitário, faltaria a Capes ter os seus grupos de pesquisa nessas áreas, não é? É, enfim, faltam projetos estruturantes. Isso não quer dizer que não haja iniciativas importantes. Eu acho que, por exemplo, na história da alimentação, o grupo do professor Carlos [Carlos Roberto Antunes dos Santos, criador de um grupo de estudos sobre História da Alimentação na Universidade Federal do Paraná, falecido em 2013], lá do Paraná. Enfim, é interessante porque é um grupo bastante produtivo, ali tem bons trabalhos, mas eu acho que é um centro dinâmico. Eu vejo também as universidades do Nordeste se movimentando, né? Agora vai ter um simpósio em Fortaleza. Acho que é o Congresso Internacional de Gastronomia e Ciência dos Alimentos [evento que aconteceu no período de 3 a 5 de junho de 2013, antes da realização da entrevista]. Então a gente vê que essas coisas começam a se estruturar com os poucos recursos públicos destinados pra isso. Acho que é uma coisa inevitável. Quando você tem uma demanda social, ela acaba se impondo em todos os planos e, ainda que demore, também se impõe na universidade. Eu acho que é isso que está acontecendo com a culinária, com a gastronomia. Se a gente quiser um antecedente histórico, que me parece ser de lá, é a coisa das faculdades de turismo. Quer dizer, elas foram se constituindo. Hoje se você entra na plataforma Lattes, por exemplo, para olhar a produção sobre turismo... É muito grande, é muito grande, não é? Quer dizer, eu acho que essa área se constituiu, conseguiu conquistar a respeitabilidade como área de negócio.   
  
Leia a revista de divulgação cientifica da Fundação Joaquim Nabuco, A Coletiva, a edição tem como tema "Comida, Cultura e Sociedade: http://www.coletiva.org/site/index.php 

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