Por Luciana Pego
De repente, no meio de trocentos programas de culinária na TV surge uma menina 'brejeira' no jeito e nas palavras e começa a falar de uma forma diferente de olhar para o alimento, uma forma mais natural, menos processada e mais saudável.
E então, programa após programa, ela começa a descascar como numa cebola, algumas camadas de conceitos culturais que por muitos anos estiveram estacionados nas nossas cabeças sem os questionarmos.
Aí algumas pessoas que já vinham de uma jornada de busca por consciência e conhecimento um pouco mais profundo que os oferecidos na novela das nove, de imediato se regozijam de felicidade por, enfim, poder aprender coisas que serão úteis para o seu dia-a-dia, ampliando suas possibilidades de cardápios, modos diversos de preparo dos alimentos, ingredientes pouco ou totalmente desconhecidos, e novas possibilidades de recriar pratos da nossa memória afetiva de uma forma diferente.
Ela substituiu o açúcar refinado pelo melado, ela falou dos benefícios de se usar o óleo de coco no dia-a-dia, ela trouxe a pauta dos orgânicos para a mesa em todas as refeições, ela atiçou a nossa curiosidade por ler os rótulos dos produtos que consumimos, ela falou de aproveitamento máximo dos alimentos e de um movimento super coerente chamado slow food que repensa toda a cadeia produtiva do alimento até que ele chegue na nossa boca.
Ela também provocou pais e mães a reavaliar a alimentação dos filhos, mostrou que merenda é algo que faz parte da rotina diária da criança e por isso deve ser considerada como parte fundamental na formação de hábitos nos pequenos, e mostrou o quanto o exemplo dos pais/adultos é importante nesse processo.
A Bela fez muita gente começar a cultivar uma horta, a voltar pra cozinha e retomar o gosto e o cuidado pelo preparo do que vai alimentar o seu corpo - e porque não a sua alma, a cozinhar com as crianças ampliando seu vínculo tanto com os pais quanto com a alimentação responsável, promoveu a marmita ao posto de melhor alternativa para comer fora de casa, e criou um espaço sensacional para falar de "alternativas" ao que está culturalmente pré-estabelecido.
Mesmo ali, falando dentro do seu universo de formação 'oficial', ela já vinha sendo enxovalhada de críticas e chacota, não só ela, obviamente, mas todos os que escolheram pra si esse caminho que passa pela busca consciente de respostas que não encontravam lugar no caminho "tradicional" - como eu, inclusive.
Mas então a Bela decidiu compartilhar suas receitas caseiras e menos industrializadas para o seu desodorante e sua pasta de dente. Isso mesmo, ela "compartilhou" com os seus seguidores uma escolha sua, ela não fez apologia ao fechamento das universidades de medicina, ela não recomendou que todos deixassem de ir ao dentista, nada disso, ela apenas expôs uma escolha pessoal publicamente.
Eu juro que se eu não tivesse lido - e entrado no debate - eu não acreditaria em algumas coisas que eu li nos comentários que se seguiram de pessoas passionalmente iradas, raivosas, babando, profissionais ostentando seus diplomas e seus anos nos bancos de escola para desafiar a "cozinheira", ofensas e comentários preconceituosos - classistas, raciais e profissionais, completamente alheios ao fato de que do outro lado há uma pessoa oferecendo sorriso, simpatia, informação e o seu melhor para aqueles em quem suas palavras encontram eco.
Assim, depois de tanta polêmica envolvendo a Bela, eu parei para tentar entender o porquê de tanta violência gratuita contra alguém que não somente pensa e age diferente como também enfrenta o status quo.
E percebi que os vegetarianos/veganos/alternativos não são diferentes dos gays, dos negros, dos umbandistas, dos pobres, das parideiras naturais e dos "diferentes" de maneira geral. Enquanto nas sombras, escondidos, acuados e invisíveis, não serão jamais pauta para o debate mas a partir do momento em que ganham espaço e expressão, que questionam a "normalidade", aí a coisa muda de figura.
Quanto tempo ainda vão levar os brasileiros (porque roupa suja se lava em casa e cada cultura é muito diferente da outra) para aceitar que o espaço público é de todos, que ninguém é melhor que ninguém, que o conhecimento das rezadeiras e dos pajés não é menor do que o dos acadêmicos, que o moleque da favela pode frequentar o shopping, que o casal gay pode se beijar em público, que umbandistas devem ser respeitados, e que o mundo existe nas diferenças e nas relações que se criam no espaço entre elas?
Por que tanto terror quando alguém percorre uma rota diferente da estrada principal onde a maioria trafega?
Será o medo de perder poder, espaço, dinheiro, status ou orgulho? Tudo isso é culpa daquela entidade reconhecida pela psicanálise como Ego?
Gente, há espaço pra todo mundo, essa ideia colonialista de que uma cultura só pode existir destruindo a outra está ultrapassada, e quanto mais soubermos conviver, melhor será o mundo pra todos.
De verdade, ontem eu cheguei a ter pena de muita gente, pena pelo grau de envenenamento em que vivem, pelo quão contaminadas de ódio estão, considerando que a gente só pode dar aquilo que sobra dentro da gente, né?
Mas tive medo também, medo de precisar de um profissional de saúde e não saber a quem recorrer porque, pela amostra de cães raivosos que vi ali, pessoas sem o menor respeito pelo outro ser humano, respeito às escolhas individuais, de verdade, quem quer alguém assim por perto?
Depois dos últimos acontecimentos ando um tanto quanto temerosa, imaginando uma cena de violência física e verbal na cadeira de um dentista ao declarar, ressabiada, a opção pela não aplicação de flúor ao final da limpeza. Sério. Já me imaginei fazendo exame de corpo de delito.
Pelo visto os anos nos bancos da escola e os diplomas não dão conta do esvaziamento de valores da sociedade, né?
E enquanto isso as Belas seguirão surgindo para mostrar para os intolerantes que o mundo é muito maior do que o entorno do seu umbigo e que há muito, mas muito mais coisas para se aprender nessa vida do que poderemos em nossa breve passagem por aqui. Mas começar pelo respeito já seria muito bom.
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*A expressão do latim "in statu quo res erant ante bellum" significa "o estado que as coisas eram/estavam antes da guerra", pela permanência, pelo conhecido, rotineiro.
Bellum se refere ao que é 'bélico', ou coisas relacionadas à guerra, mas no exemplo pode também ser aplicado à Bela, rs. E como incomodam as pessoas que questionam esse tal de status quo, né?
Enquanto eu lia meu livro preferido da minha pré-adolescência, jamais poderia imaginar que a ficção de Pedro Bandeira seria tão verídica, que havia no mundo pessoas tão agarradas à tal 'droga da obediência'.
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