terça-feira, 3 de junho de 2014

Cru, cozido, mexido por Edgar de Assis Carvalho

A culinária contemporânea, que se apropria da regional para inseri-la em novos contextos, coloca na mesa o conceito de “desterritorialização”
Por Ricardo Barretto
Ricardo Barretto
Ricardo Barretto
Território e cultura são planos que se misturam e se influenciam mutuamente. O espaço físico determina atividades produtivas e ritos de uma população, ao mesmo tempo que a população modifica o ambiente onde vive de acordo com valores, costumes e interpretações da realidade.
A culinária talvez seja a atividade em que essas interações se manifestem de maneira mais explícita.  As formas tradicionais e regionais se desenvolvem à base dos recursos naturais disponíveis em determinado lugar.  Já na gastronomia contemporânea, essa interação é levada às últimas consequências, por meio da rica e intensa dinâmica com a qual a cozinha tradicional e regional é apropriada e inserida em novos contextos culinários e culturais.
Promover linhas de fuga de um elemento em relação ao contexto em que é conhecido e reorganizá-lo em uma nova conformação remete aos conceitos de desterritorialização e reterritorialização, criado pelos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari.  
No caso da culinária, isso se dá de várias formas: uso de ingredientes exóticos, técnicas de baixa cocção, formas de apresentação da comida, entre outras.  O resultado pode ser a ampliação do universo de sabores de um prato, sua elaboração como obra de arte ou mesmo a inserção em um contexto de sustentabilidade- como na busca de uma alimentação mais saudável e produzida com menor impacto socioambiental.
“Quando os chefs contemporâneos revisitam a culinária tradicional do Amazonas, e chegam a uma nova proposta, podemos olhar para isso como o duplo vínculo entre desterritorialização e
reterritorialização”, exemplifica o antropólogo Edgar de Assis Carvalho, professor da PUC-SP, doutor em Antropologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro (atual UNESP), com pósdoutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris.

Tartar de atum com pérolas de mandioca
Essa mistura faz parte do menu que a chef baiana Morena Leite desenvolve para o restaurante Capim Santo, em São Paulo.  “Tem gente que pergunta se é um prato brasileiro.  Digo que é uma fusão de ingredientes.”  Carvalho acredita que as misturas são um vetor de desterritorialização na culinária.  “Isso é um traço da cultura contemporânea no mundo inteiro, muito relacionado à cultura fusion.  A cultura contemporânea está se ‘deslocalizando’.”  Ao trabalhar com fusões, Morena Leite tem por base um Princípio da Cordon Bleu, renomada escola de gastronomia francesa, onde se formou, que é valorizar o que tem em cada região, valendo-se da técnica do contraste.  “No restaurante você pode comer um picadinho de picanha acompanhado de uma salada de quinua”, exemplifica, ao citar a junção da carne vermelha com o grão típico da culinária vegetariana.
As misturas que Morena promove estão ligadas a sua busca pela brasilidade, não apenas por meio dos ingredientes, mas na concepção dos pratos.  “Não dá para falar em brasilidade com purismos.  Somos uma cultura de misturas.”

Moqueados, defumados, suavizados
O caldeirão cultural nacional serve de referência para muitos chefs contemporâneos. Mariana Villas Boas é autêntica representante desse movimento.  Passou parte da infância no Parque Indígena do Xingu, acompanhando a mãe antropóloga e o pai indigenista.  “Lá conheci os moqueados e os defumados, que são tão necessários à rotina dos índios.  Como fazer isso chegar à nossa mesa?”, questiona.  Mariana, no entanto, não é adepta das fusões.  Ao contrário, busca a simplificação ao reterritorializar pratos brasileiros.  “Se a gente fala em comida regional, tem muita coisa pesada, gordurosa.  Comida baiana, por exemplo, é muito condimentada.  Como compor menos forte?”  Algumas dicas de Mariana: “Tento trabalhar com ingredientes orgânicos, frescos, amainar temperos, procurar a essência dos sabores.  A coisa mais original e simplificada.”
Outra adepta da suavização de pratos é Ana Luiza Trajano, autora de uma pesquisa para a qual percorreu 47 cidades brasileiras e que resultou no livro Brasil a Gosto (Editora Melhoramentos) no restaurante homônimo.  “Se lá eu faço rabada, tiro o osso e todas as nervuras e gorduras.  O caldo é da rabada, mas sem aquele peso”, conta Ana Luiza.  “Você não mexe na receita, mas a suaviza.  E vas misturas é importante reconhecer cada ingrediente, sem que um brigue com o outro.”

Crus e pouco cozidos
Encarar a culinária como vetor de saúde é outra concepção que permeia a gastronomia contemporânea em seu processo de reterritorialização das comidas típicas.  “Sou adepta da culinária saudável, da alimentação como farmácia natural”, conta Morena Leite, que indica alguns princípios da alimentação alinhada com a sustentabilidade.  “Viver uma vida com mais harmonia passa também por saber a origem dos alimentos, como foram transportados, como serão manuseados.”  E faz uma ressalva: “É preciso deixar esse mito de que, se é saudável, não é saboroso”, defende Morena, que evita fritura, manteiga, creme de leite e dá preferência ao azeite, a alimentos crus, frescos, e ao preparo com baixo cozimento.
Outro modo de reterritorialização da culinária é tratá-la como vetor de conhecimento.  Ana Luiza Trajano segue esse princípio ao pé da letra.  “Meu propósito é divulgar a cultura brasileira.  A comida no restaurante é só uma desculpa”, brinca sobre as atividades que promove no Brasil a Gosto.  “As pessoas têm pouco preconceito (menor resistência) em relação à comida.  Por isso eu divulgo o Brasil por meio da cultura gastronômica.”
No restaurante são organizadas programações culturais com poesia, teatro e música, levando temas como ‘comida e fé’ ou ‘festas populares’.  “A comida se torna um elo entre a fonte dos pratos e os centros urbanos”, define Ana Luiza, que treina os garçons para que saibam contar a história das iguarias servidas.
“Você vê a quantidade incrível de livros de gastronomia.  É quase uma filosofia.  A culinária está perdendo essa coisa local, para ficar mais universal”, avalia Edgar de Assis Carvalho.  O antropólogo ressalta que a culinária também sofreu uma reterritorialização ao ser transformada e reconhecida como atividade artística.  “Existem cozinhas, como a do restaurante DOM (em São Paulo), que são uma obra de arte, um museu praticamente.”  O exemplo mais contundente dessa reterritorialização da gastronomia em obra de arte vem da Documenta de Kassel, mostra alemã de arte contemporânea.
A edição de 2007 tinha como tema a “transformação” e agregou o restaurante El Bulli, do chef catalão Ferran Adrià, a seu programa, como um pavilhão deslocado (o restaurante fica na região da Catalunha), onde as obras expostas eram seus pratos.  Talvez nem os modernistas adeptos da antropofagia imaginassem que um dia seria possível literalmente comer uma obra.

O antropólogo Claude Lévi-Strauss descreveu em 1964, no primeiro volume da obra Mitológicas, o uso do fogo na culinária indígena como o signo da passagem do homem e sua relação com o ambiente de um contexto de natureza para o de cultura.  Essa passagem ficou marcada pela expressão “O cru e o cozido”, que dá nome ao livro de Lévi-Strauss.  “A transformação de um estado para outro é possível pela mediação do fogo.  E fogo é igual à cultura”, explica o especialista .
Os vários estágios dos alimentos foram organizados por Lévi-Strauss em um triângulo no qualos vértices correspondem aos estados de cru, cozido e podre, e os lados indicam o assado, o defumado e o ensopado, que representam os estados intermediários entre cada vértice.  “Esse triângulo pode ser observado nas diferentes formas de preparo da comida em todas as culturas”, explica Carvalho.  Do arroz com feijão ao biju com caldo de peixe.  Do stake tartar com molho de tamarindo ao casu-marzu, o queijo italiano repleto de larvas.

Leia entrevista com Edgar de Assis Carvalho, professor da PUC-SP, doutor em Antropologia pela Faculdade de Filosofia, aqui

http://www.charoth.com/

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