segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Pequeno Dicionario da Cozinha Baiana.

Verbete-A Acaçá
Comida simples, humilde, benfazeja, o acaçá já teve o seu merecido castigo culinário. 
Era no tempo em que se comia por comer, comia-se por necessidade do organismo, sem influência de publicidade ou indicações dietéticas de nutricionistas improvisados.
Viveu em paz e santidade, confortando toda sorte de pessoas.
O acaçá era merenda de menino dengoso ou enfermiço, complemento elementar de gente grande anêmica ou de crianças perebentas pelo acumulo de "sangue novo", espécie de refrigerante para cidadãos encalorados, alimento obrigatório para as mães que precisavam de amamentar os seus filhos, acompanhamento indispensável para certas comidas de azeite. Quem comeu caruru ou efó com acaçá, dificilmente se terá esquecido da delícia do gosto, assim tem inicio a cronica da Professora Hildegardes Viana, "O tempo do acaçá".
Uma pasta de milho branco ralado ou moído, envolvida ainda quente, em folha de bananeiras.
A definição é correta, mas extremamente superficial, já que o acaçá é de longe a comida mais importante do candomblé.
Seu preparo e forma de utilização nos rituais de oferendas envolvem preceitos e bem rígidos, que nunca podem deixar de ser observados. Todos os Orixás, de ESÙ a OBATÀLÀ, recebem acaçá. Todas as cerimonias, do ebó mais simples aos sacrifícios de animais, levam acaçá.
Em rituais de iniciação, de passagem, em tudo mais que ocorra em uma casa de candomblé, só acontece com a presença de acaçá.
A pasta branca à base de milho branco, chama-se eco (èko), depois de envolvida na folha de bananeira, aí sim, será acaçá. O acaçá, é um corpo, símbolo de um ser. A única oferenda que restitui e redistribui o axé. O acaçá remete ao maior significado que a vida pode ter: a própria vida; e por ser o grande elemento apaziguador, que arranca a morte, a doença, a pobreza e outras mazelas do seio da vida, tornou-e a comida e predileção de todos os Orixás. Só existe uma oferenda capaz de restituir o axé e desenvolver a paz e a prosperidade na Terra, ela é justamente o acaçá.
Do conjuto ekò (mingal) que significa o corpo e Ewè (folha) o oculto e feito o ÀKÀSÀ.
A pasta branca à base de farinha de milho (que fica alguns dias de molho e depois passada pelo pilão ou moinho) ai cozida com água até formar um mingal consistente, chama-se na verdade eco (èko).
Envolvida em um pedaço de folha de bananeira para enrijecer(na África é utilizada outra folha, chamada èpàpo), tornando-se, agora sim, um ÀKÀSÀ.(Hoje em dia nós temos a facilidade de encontrar o milho vermelho moído que é o fubá vermelho e o milho branco que é o fubá branco, mais existem sacerdotes que ainda utilizam o ritual de antigamente).

Bem sabido que quem mantem suas tradições, mantem sua riqueza, e assim a Chef Leila Carreiro, em Salvador, mantem a tradição com seu sorriso de oxalá, composto de acaçá de leite e baba de moça. O acaçá, nas palavras de Mãe Carmem do Gantois, é um "alimento de simples preparo, de sabor suave e inconfundível".

Comida simples, humilde, benfazeja, o acaçá já teve o seu merecido castigo culinário. Era no tempo em que se comia por comer, comia-se por necessidade do organismo, sem influência de publicidade ou indicações dietéticas de nutricionistas improvisados. Viveu em paz e santidade, confortando toda sorte de pessoas.
O acaçá era merenda de menino dengoso ou enfermiço, complemento elementar de gente grande anêmica ou de crianças perebentas pelo acumulo de "sangue novo", espécie de refrigerante para cidadãos encalorados, alimento obrigatório para as mães que precisavam de amamentar os seus filhos, acompanhamento indispensável para certas comidas de azeite. Quem comeu caruru ou efó com acaçá, dificilmente se terá esquecido da delícia do gosto.
O acaçá servia para tudo. Podia ser comido puro, semi-protegido pelas folhas que o envolviam, as colheradas "molhadas" no açúcar. Batido com açúcar e dissolvido em água ou leite, quente ou frio, transformava-se em bebida das melhores. Acaçá, o eterno acaçá das merendas de 10 e 15 horas, tinha seu prestígio firmado e gozava de preferências gerais.
A receita para o acaçá era e é das mais primárias. Não sofreu interferências ou adições por não haver cabimento. A maneira básica de preparo foi e ainda é a mesma que Manuel Querino colheu e registrou. "Deita-se o milho com água em vaso bem limpo, isento de quaisquer resíduos, até que se lhe altere a consistência. Nestas condições rala-se na pedra, passa-se numa peneira ou urupema e, ao cabo de algum tempo, a massa fina adere ao fundo do vaso, pois, nesse processo, se faz uso de água para facilitar a operação. Escoa-se a água, deita-se a massa no fogo com outra água, até cozinhar no ponto grosso. Depois, com uma colher de madeira, com que é revolvida no fogo, retiram-se pequenas porções que são envolvidas em folhas de bananeira, depois de ligeiramente aquecidas ao fogo."
Tudo fácil, sem precisão de aparelhagens especiais! A exclamação talvez tivesse cabimento agora que há liquidificador, fogão a gás e outras maravilhas para o trabalho no lar. Não para quem fizesse acaçá ralando milho na pedra, técnica hoje usada apenas nos candomblés ou nas comidas de preceito. Há quem faça agora acaçá com milho comprado já triturado por processos mecânicos de alta velocidade nas rotações. Mas quem foi que disse que o sabor dá no mesmo?
O acaçá era em geral feito e vendido por mulher. Uma receita simples, como a que foi transcrita, como rendia e tomava tempo quando da sua execução! Primeiro descascar as espigas de milho, debulhar os grãos, limpar todos os cabelos ou barbas do sabugo. Em seguida lavar cuidadosamente, escolhendo os caroços, retirando os carunchos, até não haver vestígios de impurezas. Lembre-se, leitor, que não havia água encanada, nem torneira. Era uma série de potes e gamelas que funcionava.
Depois de tudo lavado, o milho posto de molho para amolecer, a mulher apanhava as palhas, varria o chão, enxugava o que estivesse molhado naquele jeito asseado que era comum nas negras. Negras sim, porcas nunca - diziam com orgulho. Mesmo quando envergavam uma roupa velha e enodoada e marchavam para o mato à cata de folhas de bananeira. As mais afortunadas tinham chuchos. As outras, que não tinham posses para tais luxos, amarravam uma faca amolada na ponta de uma varinha e tudo se resolvia. Tirar folhas de bananeiras era cansativo, dependendo a boa ou má qualidade da bananeira, da chuva e da ventania do local. Folha de bananeira prata não servia para grande coisa: grossa, pouco flexível, quebradiça, esfiapando com facilidade. Um dia num sítio, no outro sabe-se onde, a rotina da apanha das folhas era a mesma. Cortadas as folhas, decepados os "talos", levadas para casa em rolos, eram selecionadas e passadas ao fogo, esfregadas com pano seco e cortadas em tamanhos padrões.
O acaçá só podia ser feito quando o milho mostrava sinal de fermentação. Escorrida a água, triturados os grãos na pedra ou pilão, passado tudo na peneira, esperar que o pó assentasse a única demora. Mas você que me lê sabe o que é cozinhar milho em pó, meia hora, uma hora, lutando com várias tarefas? Por lenha ou carvão para alimentar o fogo, abanar as brasas, mexer a panela sem parar desde o momento em que ia para o lume até quando o "ponto" atingia o desejado?
Para o acaçá ficar lustroso, vidrado, sem bolotas, trêmulo e consistente, elástico nos movimentos, nada friável, era preciso cozer com bastante água, sempre com o cuidado de não deixar ficar duro como angu de consistência grosseira. Para o acaçá ficar uma finura requeria uma hora de mexe-mexe, muito suor, braços ardendo, algumas queimaduras de praxe. Pronto afinal, ainda havia o serviço de embrulhar em pequenas porções, ainda quente, nas folhas da bananeira. Dez, cinqüenta, cem, duzentos acaçás numa tachada ou panelada. Ai o que restava era sair para vender, andando quilômetros, subindo ladeiras, subindo escadas de sobrados altos para vender um acaçá por dez réis, depois um vintém, três vinténs, tostão, cinco tostões, cinco mil réis. Em trinta anos de vendagem, a mulher do acaçá contou o tempo pelo preço que a mercadoria foi alcançando. Qual o preço atual?
Dos cinco mil réis por um acaçá para cá, a sorte da mulher do acaçá mudou. A freguesia rareou. Os meninos não queriam beber acaçá na merenda, fascinados pelas cantinas escolares e as merendeiras com chocolates vitaminados e aromatizados; os doentes sob novas orientações dietéticas também refugaram o acaçá. As mulheres cismaram que acaçá engordava, enquanto as que tinham bebês se recusavam a amamentar. Os refrigerantes gasosos chegaram para oferecer uma sensação que o acaçá não podia fornecer. Assim a clássica mulher do acaçá sumiu, e o acaçá propriamente dito se tornou quase um clandestino em alguns raros bares conservadores, achando acolhida ainda apenas nos candomblés e nos preceitos.
Acaçás de milho vermelho, de arroz, acaçás cozidos no leite de coco levemente adoçados, todos eles viraram folclore. Enquanto eles agonizam, os antigos comedores e bebedores de acaçás discutem se eles devem ser escritos com c cedilhado ou s dobrado. Acassá ou acaçá? Discutem se é de origem africana mesmo ou se tem alguma coisinha de herança tupiniquim. O que é certo é que o acaçá já teve o seu tempo.
(Viana, Hildegardes. "O tempo do acaçá". A Tarde. Salvador, 08 de novembro de 1971)

Um comentário:

  1. Comi muito acaça quando criança, era muito perebenta, me mãe se emocionou quando li o texto para ela eu tambem

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