sexta-feira, 29 de maio de 2015

Judeus e muçulmanos unidos pela cozinha

Cozinheiro israelense Yotam Ottolenghi e o palestino Sami Tamimi e Os sabores de sua cidade no livro 'Jerusalém', que vendeu mais de 500.000 exemplares em todo o mundo.
    Mesmo que seja necessário um grande ato de fé, gostamos de imaginar – não temos muito a perder –, que o homus acabará unindo os moradores de Jerusalém, se nada mais conseguir.

Assim pensam os autores de Jerusalém, livro do israelense Yotam Ottolenghi e seu amigo e sócio palestino Sami Tamimi, agora editado em espanhol (no Brasil, foi lançado em português em outubro deste ano pela editora Panelinha) e que é um grande resumo literário e gráfico da filosofia de seus escritores: compartilhar. 
Concebem a cozinha como um elemento integrador e seu receituário é mais do que uma referência gastronômica. “A comida pode ser um elemento de união e reconciliação, mas existem muitas barreiras. Jerusalém está muito dividida. As pessoas compram nos mesmos mercados, usam os mesmos ingredientes para cozinhar, mas isso não é suficiente para que queiram uns aos outros”, lamenta Ottolenghi.

“Uma relação profissional como a de Tamimi e eu é possível aqui, a milhares de quilômetros de Jerusalém


Lá diariamente surgem desafios e dificuldades para esse tipo de associação. Cada vez que o conflito recrudesce a pressão é muito forte, até para os mais liberais e bem intencionados”, afirma Ottolenghi de sua cozinha-laboratório do bairro londrino de Camden Town, com estantes cheias de livros de gastronomia e na qual o trem que passa em cima do edifício – onde sua equipe trabalha na preparação dos pedidos para o Natal – é a trilha sonora da conversa. E a trilha aromática traz os galetos assados, os doces recém saídos do forno...


Cavala com beterraba amarela e laranja do livro ‘Jerusalém’ / jonathan lovekin
Jerusalém foi “um exercício nostálgico” na memória gustativa dos cozinheiros que escreveram o livro, cuja preparação os fez viajar para sua cidade natal, e esse acontecimento cultural e gastronômico se materializou também em um documentário para a BBC (Jerusalem on a plate). 
O volume, lançado em 2012 (Ebury Press), recebeu prêmios importantes. Foi traduzido para oito idiomas e vendeu mais de meio milhão de exemplares. Entretanto, apesar de sua grande difusão internacional, o livro não foi editado em hebraico em Israel. Para poder publicá-lo segundo as regras dos ortodoxos de seu país, os autores teriam que mudar o conteúdo, algo que não estavam dispostos a fazer: “Queriam que adaptássemos as receitas para o kosher e isso implicava em tirar ingredientes. Uma censura. É muito representativo sobre o que acontece lá”.



A liberdade da mistura em uma cidade de 4.000 anos de história, com pessoas de procedências e credos diferentes, é o que Ottolenghi e Tamimi constroem: “Um imenso tapete de cozinhas”, no qual se saboreia “a energia e a paixão” da cidade. Os icônicos homus e falafel aparecem fiéis ao estilo tradicional, mas em outras receitas eles se permitem “jogar com outros elementos”. Sopa de agrião e grão-de-bico com água de rosas, cavala frita com beterraba amarela e laranja, marmelo recheado de cordeiro com romã e coentro, almôndegas de alho-poró ao aroma de limão ou sopa de cevada e iogurte são algumas das propostas. Refletem seu “gosto pela comida sefardita” e não falta um aroma tatuado em suas glândulas pituitárias: o za’atar (hissopo) “parte essencial do patrimônio palestino”.



Em sua cidade, Ottolenghi e Tamimi viveram vidas paralelas mas o garoto judeu e o garoto muçulmano nunca se conheceram. Tampouco em sua juventude em Tel Aviv, até que em Londres encontraram-se casualmente no final dos anos noventa. O primeiro foi pedir trabalho como confeiteiro em um restaurante no qual o segundo trabalhava. “Começamos a conversar e vimos que éramos conterrâneos, que tínhamos muitas coisas em comum”. Os companheiros de cozinha alheia afinal montaram a sua própria. E até hoje.

Possuem restaurantes, venda de ingredientes pela Internet – “para facilitar a elaboração de nossas receitas” – e serviço de catering em Londres, onde empreenderam sua aventura amistosa e empresarial. Mas têm seus papéis bem repartidos: Ottolenghi é gestor e porta-voz (também assina colunas de receitas semanais no jornal The Guardian, onde no ano passado contou sua experiência como padre gay). Tamimi fica nos fogões e no treinamento culinário dos funcionários. Mas Ottolenghi trabalha ativamente no laboratório de testes de ingredientes e sabores e sabe o que se passa nas cozinhas de seus restaurantes londrinos Ottolenghi e Nopi, onde todos os empregados provam os pratos para poder transmitir bem os menus, de cozinha da temporada, feita na hora. Enquanto Jerusalém, com os sabores multiculturais fundidos em uma centena de pratos, aparece nas livrarias espanholas, Plenty more acaba de sair no Reino Unido, a segunda parte do bem sucedido livro de esplendor vegetal Plenty. Em todos esses livros, “o Mediterrâneo” e os ingredientes fetiche aparecem com força: o tomate, as especiarias (cardamomo, cominho, açafrão, sementes de coentro...) e o limão. “Não posso viver sem ele, uso o sumo, a polpa, a casca...em saladas, ao forno, misturado com vagens ou grão-de-bico, em ensopados, em cozidos”, diz Ottolenghi.

E por que gostou tanto de Jerusalém? “Por várias razões. Uma é porque a comida do Oriente Médio não foi tão adotada como outras pela cozinha ocidental. Cozinha-se francês, italiano, espanhol, japonês.... A comida árabe não tem boa reputação pela baixa qualidade dos restaurantes de kebab pelo mundo; é como avaliar a pizza através do que é vendido pelas redes de fast-food... Por isso pensamos que já era hora do público apreciar uma comida gostosa e explorar ingredientes maravilhosos. A outra razão é que contamos histórias pessoais, a amizade de um judeu e um muçulmano que trabalham juntos. Os exemplos de harmonia, de otimismo, agradam às pessoas. Nossa ideia é que é possível criar algo através da cozinha. A comida transcende os conflitos”.

Fonte El Pais.

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