segunda-feira, 25 de maio de 2015

Gravações com línguas africanas faladas em terreiros baianos nos anos 1940 vão virar CD, livro e exposição fotográfica

Xavier Vatin não imaginava o que poderia encontrar no acervo de gravações antropológicas da Universidade de Indiana (Estados Unidos), um dos maiores do mundo, quando resolveu fazer pós-doutorado na instituição.


Em sua pesquisa, o professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) se deparou com um tesouro desconhecido pelos brasileiros: 52 horas de gravações feitas pelo linguista norte-americano Lorenzo Turner entre 1940 e 1941, em sua passagem pela Bahia, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Sergipe e Mato Grosso.

“Eu não conhecia Lorenzo Turner, um neto de escravos da Carolina do Norte, o primeiro linguista a se formar em Havard e a mostrar que existiam línguas crioulas no país. Ele tem uma história de família incrível: em duas gerações foi da escravidão à excelência acadêmica”.
A pesquisa de Vatin recentemente ganhou repercussão nacional por conta da descoberta de uma gravação rara que reproduz a voz do poeta Mário de Andrade (1893 – 1945), inexistente no Brasil.
Na época, a tecnologia era cara e literalmente pesada: os equipamentos e discos de alumínio que guardavam as gravações totalizavam cerca de 250 quilos, um obstáculo a mais para quem viajava em navio a vapor.
Expedição Bahia
No entanto, o que desperta o interesse do etnomusicólogo são as 17 horas gravadas por Turner em terreiros de candomblé baianos durante sete meses, nos quais registrou filhos e filhas de santo e sacerdotes como Martiniano Eliseu do Bonfim, Manoel Falefá, Mãe Menininha do Gantois e o jovem Joãozinho da Gomeia.
“Cada minuto é muito precioso. A primeira coisa que eu ouvi foi uma gravação de Mãe Menininha, aos 35 anos, isso me fez chorar. São centenas de cantigas e rezas, além de ritos funerários gravados em diversos terreiros de Salvador, Cachoeira, São Félix, Santo Amaro. O precioso para o povo de santo é que muitas dessas canções e rezas se perderam”, explica.
Vatin percorreu 5.000 quilômetros nos Estados Unidos para reunir também as fotografias e anotações de Turner feitas na expedição baiana.
O repatriamento do material vai dar origem a um CD duplo que será restituído aos terreiros, um livro e uma exposição fotográfica, cuja estreia está marcada para julho, no Museu Afro Brasil, em São Paulo.
“O que acho extraordinário, tanto na fotografia, como nas gravações sonoras, é que Turner traz literalmente a presença dessas pessoas. Talvez por ser negro, ele deu voz ao povo de santo como ninguém fez”, defende o estudioso da musicalidade do candomblé.
Segundo Vatin, Turner foi pioneiro na década em que a Bahia se tornou referência para os estudos sobre a diáspora africana, antecedendo antropólogos como Pierre Verger, que aportou aqui em 1946.
Entre 1937 e 1946, importantes pesquisadores seguiram os vestígios quase que intactos de elementos africanos no estado. “Neste período, a Bahia foi laboratório de pesquisadores da cultura negra como Ruth Landers, Verger, Melville Herskovits, Roger Bastide, Edson Carneiro, Arthur Ramos. O trabalho de Turner ficou 72 anos esquecido. Se esse homem não fosse negro, com certeza seria muito mais conhecido”, opina o francês radicado na Bahia há 23 anos.
Turner pesquisava as línguas crioulas faladas no Sul dos EUA por descendentes de escravos africanos e foi atraído pela Bahia depois de saber que nos terreiros daqui as pessoas falavam fluentemente iorubá, kibungo e fon, entre outras línguas.
“Essas gravações são os únicos documentos que a gente tem que comprovam que na década de 1940 as línguas africanas eram ainda faladas dentro dos terreiros. Além de uma mina de ouro para o povo de santo, esse material mostra que há muito tempo vem pessoas do mundo inteiro aqui para pesquisar essa cultura. Este trabalho é uma forma de reforçar a legitimidade da cultura afrobrasileira através da tradição do candomblé”.
Na foto Menininha do Gantois (3ª da D p/ E) e filhas de santo – Foto: Anacostia Museum, Smithsonian Institution, Washington, D.C. (EUA)

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