Mais da metade da população original de caboclos da Amazônia já foi desalojada de seus assentos, jogada nas cidades de Belém e Manaus. Perde-se assim, toda a sabedoria adaptativa milenar que essa população havia aprendido dos índios para viver na floresta.
Toda a área desse sistema fluvial Solimões-Amazonas era ocupada, originalmente, por tribos indígenas de adaptação especializada à floresta tropical.
Em nenhuma outra região brasileira a população enfrenta tão duras condições de miserabilidade quanto os núcleos caboclos dispersos pela floresta, devotados ao extrativismo mineral vegetal e, agora, também ao extrativismo mineral do ouro e do estanho. Os seus modos de vida constituem um variante sócio-cultural típico da sociedade nacional.
A característica básica dessa variante é o primitivismo de sua tecnologia adaptativa, essencialmente indígena, conservada e transmitida, através de séculos, sem alterações substancias.
Com o surgimento dos seringais cultivados no Oriente e da borracha sintética, a exploração da borracha nativa tornou-se economicamente inviável.
Desde então, o seringal só sobrevive graças a um protecionismo estatal que o mantém artificialmente, mas sem a preocupação de amparar a massa de trabalhadores nele engajada.
Os protagonistas desses esforços foram alguns lusitanos , muito neobrasileiros mestiços, e a indiada engajada como mão de obra escrava.
A reação indígena a esse tratamento desencadeou a guerra e o afastamento das tribos antes aliadas para refúgios em que se punham a salvo da escravidão.
Uma solução melhor seria encontrada com a instalação de núcleos missionários, principalmente jesuíticos, mas também carmelitas e franciscanos. Mas estes tiveram que lutar muito com os próprios colonizadores pra impor como a mais racional e proveitosa.
O convívio entre índios de diferentes matrizes impuseram a homogeneização lingüística e o enquadramento cultural compulsó
rio no corpo de crença e nos modos de vida dos seus cativadores.
Foram, no entanto, reduzindo progressivamente as populações tribais autônomas, prela incorporação do sistema de contagio que as dizimava, vitimadas por enfermidade antes desconhecidas, pela guerra e pelo engajamento e desgaste no trabalho.
Foi surgindo uma população nova, herdeira da cultura tribal no que ela tinha de forma adaptativa à floresta tropical. Falava
uma língua indígena, muito embora esta se difundisse como a língua da civilização, aprendida de brancos e mestiços. Como os índios, finalmente localizava e coletava na mata as es
peciarias cujo valor comercial tornava viável a ocupação neobrasileira da Amazônia e a vinculara à economia internacional. Nenhum colonizador sobreviveria na mata sem esses índios que eram seus olhos, suas mãos e seus pés.
A Coroa Portuguesa esforçou-se por estabilizar a sociedade nascente, estimulando o cultivo de algumas plantas indígenas.
Desse modo, ao lado da vida tribal que fenecia em todo o vale, alçava-se uma sociedade nova de mestiços que constituiria uma variante cultural diferenciada da sociedade brasileira: A dos caboclos da Amazônia. Seu modo de vida, essencialmente
indígena enquanto adaptação ecológico-cultural, contrastava flagrantemente, no plano social, com o estilo de vida tribal.
O pleno amadurecimento da nova estrutura soci
etária só se deu co o rompimento da dualidade que a dividia em reduções missionárias e núcleos colonizadores.
A Coroa portuguesa, empenhada em consolidar a ocupação da Amazônia, construí uma rede de cidades urbanizadas e dotadas de serviços públicos e igrejas que chegaram a ser suntuosos para a região. A dupla função dessa massa cabocla foi a de mão de obra de exploração extrativista de drogas da mata exportadas para a Europa. Foi também instrumento de captura e dizimação das populações indígenas autônomas.
Sobre o caboclo caíram duas ondas de violência. A Primeira veio com a extraordinária valorização da borracha no mercado mundial, lançando sobre eles gentes vindas de toda parte para explorar a nova riqueza. Perderam sua língua própria, adotando o
português. A segunda onda ocorre em nossos dias com a nova invasão da Amazônia pela sociedade brasileira, provocando o desalojamento dos caboclos das terras que ocupavam.
A percepção que índios e caboclos tinham do inimigo como seu opressor étnico adquire aqui a crueza de uma oposição racista que engloba todos os “homens de cor” numa só categoria de inimigos a serem exterminados.
Século passado a região amazônica volta a experimentar uma quadra de prosperidade, motivada agora pela crescente
valorização nos mercados mundiais de um de seus produtos tradicionais de coleta: a borracha, com desenvolvimento da industria européia e norte-americana de automóveis.
Uma ferrovia é construída em plena mata, à custa de enormes sacrifícios humanos, a Madeira-Mamoré, que ligaria concentrações de seringueiras de Porto Velho até o Rio
Mamoré. Cada trabalhador engressava no serviço co
m sua feira e seu débito, que aumentaria cada vez mais com os suprimentos de alimentação, de remédios, de roupas providas pelo barracão. Dificilmente um seringueiro consegue
saldar essa conta que o mantém em regime de servidão virtual enquanto possa resistir às terríveis condições de vida a que é
submetido. Em cada seringal, um grupo de caboclos am
azônicos exerce as funções de mestre. Ensinam a identificar a seringueira, a sangra-la diariamente sem afetar-lhe a vida, a colher o látex e a defuma-lo cuidadosamente para formar as bolas de borracha. A prosperidade da economia extrativista interrompeu-se, porém, abruptamente com a Primeira Guerra Mundial. Não se refaria jamais por causa da entrada no comércio
mundial da produção dos seringais plantados pelos ingleses no Oriente.
A decadência da economia da borracha matou também as cidades que floresciam pela Amazônia inteira, provocando o comp
leto abandono de algumas e a completa deterioração de outras. Sem produção básica para exportar, o comércio decaía, sobrevivendo apenas com o apelo a especulação e ao contrabando.
O desequilíbrio da economia regional, suas dificuldades de integração na vida do país e as precárias condições de existência de suas populações levaram os constituintes de 1946 a destinar uma parcela de 3% das rendas federais a um programa devalorização da Amazônia. Tal como a pobreza do Nordeste árido fez do amparo federal uma “indústria da seca”, a penúria dos caboclos da Amazônia fez do “desenvolvimento regional” um rico negócio e um mecanismo de consolidação política da oligarquia local.
A tentativa de espoliação assumiu a forma de uma proposta, apresentada à ditadura pelo governo norte americano, de arrendamento da área por 99 anos com o fim de “estuda-
la e comprovar experimentalmente as técnicas adequadas para promover o seu desenvolvimento”.
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