A Bahia amanheceu em festa e a notícia se espalhou feito brisa nos coqueirais, estava de volta à cidade, o filho querido, aquele que tão bem cantou os costumes, a religiosidade, o folclore, a cultura e a levada da sua terra e da sua gente, o amigo e compadre de longas datas, meio-irmão, quase mabaço, unha e carne de Seo Valdivino do Amor Divino. Salve o Obá de Xangô! Kaô kabiessi ! Obá Onikoyi! Axé, babá!
Há muito não avistava o camarado, precisava encontrá-lo, prosear, botar as conversas em dia, jogar conversa fora. Ficar assim à tardinha, mamparreando, mamparreando, no ramerrão da praia. Proseando, proseando, refestelados na areia da praia espiando até onde os zóio não consegue alcançar... E depois com o sol se pondo, cantarolar uma daquelas melodias tão lindas, de uma lindeza que não tinha mais tamanho e que só ele sabia cantar. E quando a noitinha de mansinho chegasse, contar estrelas, assar um peixe na folha da bananeira e comer, acompanhado de umas talagadas de uma pinga porreta do Recôncavo. E assim, assim, contar culhudas até as primas horas da noite. Depois de depois, puxar um ronco que ninguém é de ferro...
Na primeira estrela da manhã, sair pro mar, jogar uma redezinha e esperar os bichos pular. Cada bitelo! Ói, o tamanho do bicho, cada lapa! Ói, o peso. Vixe Maria mãe de Deus! Odoyá, minha mãe! Pescar um peixe bom e trazer...
Há muito não havia pesca, nem de farracho, arrastão então, nada, é nem uma, é de cortar o coração! Saveiros então, nem se fala, se picaram-se todos. Os peixes? Ah! Os peixes
escafederam-se, sumiram-se tudo, e os amigos tombém. Há muito não avistava umzinho sequer, nem peixe, nem camarado, nada de nada. É de moquequiar o coração!
Andando pela praia de Caixa-Pregos e as lembranças dançando em volta da cabeça dele que nem pititingas prateadas a saltar na rede, que nem xaréu brilhando em noite de lua cheia. Voavam. Debatiam-se, querendo escapulir. Clareando, clareando, com pouca, anuviano, anuviano, para depois aclarear de novo, e aquele sorriso aberto, bem grande, de Dorival no horizonte tomando conta de toda a imensidão do mar.
Carecia avistar o camarado, tirar dois dedos de prosa. E se ele cismasse de visitar os lugares onde passou os melhores dias da vida dele? E se ele encasquetasse de ver a velha Bahia? Os lugares onde foi feliz? Itapuã? A Pedra da Sereia? A Lagoa? Diz o povo que é melhor nunca voltar ao lugar onde se foi feliz.
Temia pelo amigo de versos e prosas. Ele, Valdivino do Amor Divino, já estava acostumado com as mudanças da terrinha, resignado, que nem peixe no anzol. Aquilo lá, estava virando uma moqueca de arraia, Afe, Maria! É de escamar o coração! Por isso agora ele estava cada vez mais distante, se picara-se para Caixa-Pregos, cada vez mais longe, vida de pobre é assim mesmo, os ricos bota os pobres pra correr pra cada vez mais longe, fazer o quê? Paciência! Aí só Deus, só Deus!
O compadre, não, há muito não vinha à Bahia, podia levar um susto e babau, Vixe Maria! Nossa Senhora! Misericórdia! Desanuveia esses encasquetamentos homem de Deus! Não e não. Nada de nada, ia ser uma festa, com fé em Deus e nos Orixás, Atotô meu pai! Odoyá, minha mãe!
Ômi deixa de anuviamento, se avexe não, a alegria do reencrontro apaga as tristeza da saudade. Quem sabe com a chegança dele à Bahia, com fé em Deus e nos Orixás, os governantes não tomassem vergonha na cara e fizessem alguma coisa que prestasse. A justiça de Deus tarda, mas não faia!
Será que ele ia estranhar muito? Nossa Senhora, chega dá uma fisgada no peito, será que ele, ainda, ia achar a terra dele o sonho mais lindo que há?
Logo na chegada, ele ia sentir alguma coisa estranha, qualquer coisa errada, será que eles tinham largado a proa, rasgado a vela, quebrado o leme, perdido o prumo, ficado à deriva e saltado em outras terras, em outras paragens? O nome do Aeroporto nera mais Dois de Julho? Será que ele vinha de avião, de saveiro ou de jangada? Homem se assunta, tá atoleimado, d’adonde ele vem é de longe, qual jangada ou saveiro o quê, só se for de Ita, mas Ita num tem mais, se assunta, ele vem é de avião mermo.
As mocinhas risonhas da chegada pareceriam baianas, pareceriam estar vestidas de baianas, mas não eram baianas, não. E Dorival cantarolando: “Um rosário de ouro/ e uma bolota assim...”. Umas vestes estranhas, parecendo bumba-meu-boi. Cadê os balangandãs, as miçangas, os dengos e os requebros faceiros? E ele suspirando baixinho: “Só vai no Bonfim quem tem...” Sorriria sem graça para as meninas e pediria ao amigo que o acompanhasse até o automóvel.
Alegrar-se-ia com o bambuzal do aeroporto, ainda estava lá como havia deixado. Lembrar-se-ia dos coqueiros de Itapuã e cantarolando solicitaria ao chofer que tocasse pela orla. O moço que guiava, todo solícito, querendo ir pela Avenida Paralela, era menos engarrafada e o trafego andava mais rápido, não, não, insistiria cantando mais alto com a sua voz de baixo profundo: “Coqueiro de Itapuã/ Coqueiro... e emendaria com “Abaeté é uma Lagoa escura/ arrodiada de areia branca.../ Ô de areia branca/...”, depois, sorriria com dengo e com toda paciência e serenidade que Deus lhe deu, olharia pela janela a movimentação frenética dos automóveis sobre o viaduto, dali pa’pouco chegariam a Itapuã.
Logo, logo mataria as saudades de Itapuã, e com água na boca alembrar-se-ia do acarajé, do abará, do acaçá, do vatapá, da passarinha, do bolinho de estudante (mais conhecido como punheta), da cocada-puxa da negra baiana com o tabuleiro de iguarias na cabeça.
O automóvel no engarrafamento e o chofer desavisado dizendo em alto e bom som: “Já estamos n’Itapuã”, e Dorival com a voz embargada, consertando ; “Tá chegando, tá chegando...”, não querendo crer no que estava vendo ; lojas e mais lojas, outdoors, propagandas e mais propagandas, borracharias, oficinas, lojas de auto peças, motéis, e muito cacete armado feito à migué, a culhão como se diz aqui na Bahia. É de moquequiar o coração baiano! “Mas tudo isso aqui era mato, areal e restinga...” Sussurraria sorrindo e resignado o poeta, mais uma vez pensaria ter errado de cidade, enquanto o moço que guiava reclamava de alguma coisa. Será que ele havia errado o itinerário? Não, era ali mesmo, a Bahia cresceu além da conta, principalmente o lado pobre e miserável. Natural, as cidades brasileiras estavam inchando que nem baiacu no anzol, natural... Natural, mas dói...
Estavam chegando, estavam chegando, após uma hora de engarrafamento chegariam ao Largo da Sereia, avistariam a estátua do poeta Vinícius de Morais, sem o copo e sem os óculos, haviam roubado. Dorival respiraria fundo, sentiria a brisa tantas vezes desfrutada, não era o mesmo ar puro de outrora, estava diferente, nenhum saveiro ou jangada a singrar o mar de Itapuã, apenas cadeiras plásticas ao longo da areia, “a praia virou bar?”, murmuraria Dorival, sem graça. Ao lado, num quiosque improvisado, um samba esquisito com uma loura oxigenada no meio da roda, mãos no joelho a sacudir freneticamente o seu carismático balaio. “Vamos na Lagoa do Abaeté,...”, lhe diria Valdivino, fugindo do constrangimento que nem siri no seco.
Tocariam para lá. No caminho cruzariam com enormes caminhões caçambas carregados de areia branca e fina a derramar pelo asfalto. Chega dá uma pontada no peito! O poeta, mirando em volta, procurando as dunas brancas e somente avistando loteamentos, villages, resorts, Vixe, Maria! Casas de invasão, puxadinhos, pirambeiras, ingrizilhas e o diabo a quatro. O chofer enxerido querendo bodejar sobre os assaltos constantes naquela área, desistiria ante o olhar de reprovação do compadre, mania que esse povo tem de dar notícia ruim! Ali onde havia um areal, com umas dunas cinematográficas a se perder de vista, agora, era um amontoado de casas feias e mal - ajambradas, algumas enormes, palacetes de granfas, cercadas de gosto duvidoso, outras sem reboco ou mal pintadas. Acolá, outro areal devastado, destruído. E Valdivino sentindo um engasgo que nem peixe no anzol. O quê se há de fazer? Paciência!...
Pronto lá estava ela, a lagoa escura, arrodiada de areia branca, esplendorosa, radiante, encantadora. Saltariam, e ele sorrindo e cantarolando: ”Abaeté é uma lagoa escura...”, espreguiçar-se-ia, erguendo os braços para o alto, agradecendo aos santos e aos orixás. Caminhariam até a beira d’água, onde Dorival com as mãos em concha saudando a mãe Oxum : “Ora yeyê ô!”, ensaiaria molhar o rosto ou quem sabe até mesmo beber daquela água santa, quiçá, banhar-se-ia, que farra! Seria impedido pelo chofer que apontaria dejetos plásticos boiando à margem, Dorival não ia gostar da repreensão, mas cederia sorrindo quando o compadre pilheriasse : “Ômi, a água tá meia anuviada, espia quanto bregueço, tem inté camisas-de-vênus!”. Os três sorririam encabulados. A lagoa ainda era bela, vista de longe, linda e mágica.
Aonde andará as lavadeiras e suas cantigas e dengos? E o povo - de - santo com seus batuques e cânticos? Ora yeyê ô, ora yeyê ô! “Ê, de noite, ê/ De noite até de manhã/ Ê, de noite, ê/ Ouvir cantar pra Nanã...”, aonde andará, aonde andará? Do alto, viriam uns ruídos, uns sons bate-estacas, umas aleivosias modernas de um automóvel estacionado... “Vamos pro hoté?”, diria Valdivino baratinado pressentindo o constrangimento, “Depois do rancho, nóis vai vê casa véia, no Centro Histórico, que-diga”. Dorival seguiria a contragosto e o compadre com coração na mão, mais aflito do que siri na lata, mais enrolado do que tentáculos de polvo.
À tardinha rumariam em direção ao Centro Histórico. Via orla, pediria Dorival. “Cadê o Teatro Maria Bethânia?”, Virou bingo. “E o Cine Rio Vermelho?”, Virou Igreja Evangélica. E a Igreja de Sant’ana ? Tá’li... Tá’ li... Quantos bares e hotéis, hotéis e mais hotéis. Odoyá, minha mãe! Atotô, meu pai! Diria o poeta se benzendo. Tudo bem, toca em frente, aquelas casinhas amontoadas ali junto daqueles arranha-céus, é o Morro da Sereia ou o da Paciência? É... É... Toca mais ligeiro chofer, estava doido para ver Ondina. “Já passou, Seo moço”, resmungaria o condutor envergonhado. Ainda bem, suspiraria o quase-irmão aliviado, ele não iria reconhecer mesmo.
Farol da Barra. “O carnaval agora é aqui, pai!”, diria Valdivino tentando animar o compadre. “Tudo granfa, tudo de camarotes”. E a Praça Castro Alves? Perguntaria o poeta. “É do povo, é do povo, como o céu é do condor!”, diria o moço que guiava, displicentemente, apontando o farol. Porto da Barra, Ladeira da Barra, Largo da Vitória, tudo tão diferente, tão desigual, modernoso.
Será que valeria a pena levar o amigo e compadre para ver o estado lastimável em que se encontrava o Centro Histórico, ainda que o Pelourinho estivesse maquiado, e o restante do patrimônio caindo aos pedaços? Valeria a pena fazer o amigo passar por tamanha tristeza e constrangimento? E quando eles passassem pela Alameda da Vitória, e o poeta calado, fechado em ostras, parecesse não reconhecer nada daquilo, muitos edifícios, edifícios e mais edifícios, estaria na Bahia mesmo? “Ói compadre, tamos chegando no Campo Grande”, diria o meio - irmão, percebendo o olhar atônito do poeta. “Campo Grande, já?”, perguntaria Dorival abrindo um sorisso que nem pérola de dentro da ostra.
Pediria ao chofer que fosse mais devagar com o andor.
Queria apreciar a Rua Forte de São Pedro, as Mercês, a Igreja das Mercês, a Avenida Sete, quão diferentes, lojas e mais lojas de eletrodomésticos; a parte térrea dos casarões, desfigurada, camelôs e mais camelôs, comerciantes a dar com um pau, Vixe Maria Mãe de Deus! Praça e Igrejas da Piedade, “Senhor tende piedade de nós!”, benzia-se Dorival, e Valdivino com o coração que nem caranguejo se estrebuchando na panela de água fervendo.
O Relógio de São Pedro, parado, quebrado, carros e mais carros, mais gente vendendo do que comprando, que nem cardume de caçonetes fugindo de tubarão. Mosteiro e Igreja de São Bento, pelo - sinal, em nome-do-pai, parecia rezar tamanha contrição. Quando descessem a Ladeira de São Bento, Valdivino pediria ao chofer para tocar mais ligeiro, fizesse a volta na ladeira de São Bento, fosse pela Carlos Gomes, melhor que o poeta não avistasse a Praça Castro Alves, e se ele pedisse ao chofer para dar uma paradinha na Praça? De lá avistariam as Ladeiras da Montanha, da Preguiça, do Sodré, da Conceição, arrasadas, todas as casas em ruínas, cada cafofo, cada mafuá, Vixe Maria Mãe de Deus!
Todo o Comércio e a Cidade Baixa pedindo PPU (Pedindo Penico Urgente, SOS de baiano), os casarões com os seus telhados e paredes desmoronando, escombros, entulhos, muitos espaços vazios, latrinas e estacionamentos improvisados, parecia uma cidade bombardeada, Jesus, Maria, José! Valei-me minha Santa Barbara! Como deixar o amigo-irmão passar por tamanho vexame? “Óia lá o mar, que lindo... Óia o Forte de São Marcelo!”. Distrairia o amigo. E ele com o olhar perdido entre os sobrados e o horizonte. Seria moquequiar demais tão nobre o coração, Vixe Maria mãe de Deus! E se ele inventasse de ver a Rua Chile, acabada, esquecida e cheia de casas de agiotagem? Não, não, melhor não, aí, era mesmo que fazer xinxim do pobre coração, tá rebocado! Piripicado! E se o automóvel subisse picado a Ladeira da Ajuda? O poeta reconheceria a Rua Chile? Ali era o Teatro São João, diria Dorival, aquele ali era o prédio do jornal A Tarde, mas ele saía de manhã. A antiga loja Adamastor, do pai de Glauber, a Slooper, as Duas Américas, a primeira escada rolante da Bahia, não existem mais, como está abandonada a Rua Chile! Aí, era mesmo que cortar o coração do poeta em postas, tá reboré, piripiri! E o automóvel seguindo pela Rua da Ajuda. O prédio do Tesouro do Estado, agora vai ser o Museu Afro, ainda bem que fizeram alguma coisa que preste! A Igreja da Ajuda, ué, cadê o prédio do Banco Econômico? Desmancharam duas ruas de Casarões Históricos para fazer um ponto de ônibus? É de lenhar! Vixe Maria! Nossa Senhora! Valei-me minha Santa Bárbara! Ó pái, ó! Ali era a C. Sampaio, diria Dorival tentando se animar, é verdade, é verdade, a primeira loja de long-plays da Bahia, o sonho de todo cantor baiano era ter um long-play sendo vendido ali, ele, Gil, Caetano, todo artista da Bahia sonhou com essa façanha, faça a volta aí no Café das Meninas chofer, pediria Dorival. Os carros agora têm que fazer a volta lá na Praça da Sé, diria o moço que guiava, então tá certo toca pra lá, alegrar-se-ia Dorival. E a Praça Tomé de Souza, a Praça do Elevador Lacerda, com aquela estrovenga que chamam de Prefeitura, aquele cacete armado modernoso? E a Hamburgueria “Baitacão” logo na entrada do Elevador Lacerda, em pleno cartão postal da Bahia, não, não, melhor não, assim, era mesmo que arpoar o imaculado coração. E quando chegassem na Praça da Sé? Aquele deserto de granito, com uma fonte luminosa ao som de música americana? Que mania que essa gente tem de imitar gringo! Afe, Maria! Não, não, melhor não, era preferível ficar ali na Praça Castro Alves, mesmo. “Óia o restaurante O Cacique, vamos comer no Cacique?” O poeta reviraria os olhinhos com cara e dengo de quem viu cocada-puxa. Não havia mais o Cacique. “Óia compadre, tá vendo ali, era onde funcionava o Tabaris, o grande Cassino e Dancing da Bahia”. “Tô vendo! Tô vendo, depois, na frente, fizeram o cinema e deram o nome de Cine Guarani, para homenagear a ópera O Guarani de Carlos Gomes, depois mudaram para Cine Glauber Rocha para homenagear o cineasta baiano, depois fecharam de novo”, diria o poeta mostrando erudição. “Esses políticos, ô cambada de safados...”, praguejaria Valdivino tentando alegrar o amigo, “... já gostam de uma homenagem e uma inauguração, com uma meia dúzia de políticos desses, ninguém precisa de guerras, de enchentes, de mau tempo, de tempestades, de maremotos, agora cuidar do preservamento que é bom, necas de pitibiribas!”
Dorival sorriria com os gracejos do amigo. Não, não, Valdivino, mudaria de assunto, “Óia o prédio do jornal ATarde, tem esse nome e sai de manhã, engraçado né?”, repetiria o gracejo tentando alegrar o poeta. Não, não, não iriam até o Centro Histórico, não, seguiriam pela Carlos Gomes, desceriam o Largo Dois de Julho e rumariam pela Avenida Contorno, aquela vista magnifica, decerto encantaria o menestrel. Nem mesmo o Terreiro de Jesus e o Pelô, valeriam a pena visitar, muitos negócios e negociantes. Depois tudo aquilo era demais para um coração tão sensível, praiano. Não, não, tocassem para a Cidade Baixa. “Vamos no Bonfim, compadre?”, Dorival escancararia um sorriso de orelha a orelha. “Toca pra lá chofer!”. Aí sim, aí sim, do topo da Avenida Contorno descortinaria esplendorosa a Baía de Todos os Santos e os olhos do poeta cheios d’água e de alegria. Que maravilha a Bahia! Alguns instantes de êxtase e alumbramento, pareceriam duas crianças saboreando baba-de-moça. O mar da Bahia, o céu da Bahia, o sol da Bahia, lá do outro lado, a ilha de Itaparica, mas alegria de pobre dura pouco, que murada doida era aquela? Fizeram uma cortina de cimento, depois do Solar do Unhão, cobrindo toda a visão de quem passa apreciando a paisagem e ainda têm a cara-de-pau de desenhar umas ondinhas na muralha horrorosa, um cacete armado, isso sim, chamavam de cais, não, chamavam de Píer ou Pier, uma peste dessas aí, quem já viu? É ruim, hein? Tem gente que pensa que os outros é besta! Isso é coisa de rico: “Rico quando não caga na entrada, caga na saída!”. E quis barracão mal - ajambrados são aqueles na prainha do Unhão? Dorival se pipocaria de rir se adivinhasse as conjecturas do amigo. Que estrupício! Onde já se viu uma coisa dessas? Ao passar pela Igreja da Conceição, ambos se benzeriam com uma precisão coreográfica. Pediria ao chofer para tocar o barco, ansiava passar por ali o mais rápido possível, pois temia o desconforto do amigo em meio a tantos casarios caindo aos pedaços, e se ele perguntasse pelo cais do Mercado Modelo? Vixe, Maria mãe de Deus! Aí, era de cortar o coração do homem, que nem se corta quiabo em Caruru de Cosme e Damião, bem miudinho. O cais, não existia mais, fecharam, em seu lugar botaram um Posto de Gasolina, valei-me Nossa Senhora! Quem já viu? São umas antas, mesmo. Ô despautério! Oxalá, qu’ele não perguntasse pelo cais do Mercado Modelo, senão babau! Aí, era esmigalhar o coração que nem moqueca de siri - bucêta! O poeta apreciando toda a Avenida do Comércio na Cidade Baixa com um sorriso entre o incrédulo e o resignado. Uma ou outra coisa bonita e muito estrago. Diz o povo que os gringos tão comprando tudo, tudo, querem fazer que nem o principado de Monaco ou Mônaco lá das estranjas, uma porra dessas aí, pensaria Valdivino com receio que o compadre adivinhasse seus encasquetamentos. “Ói, a Ladeira da Água Brusca! Daqui pa’pouco nóis passa na feira de São Joaquim, antiga Água de Meninos!”. Outra pontada no coração. Avia, chofer, pé na tábua, toca com esse bonde, passa nas carreira homem de Deus, avia. E o motorneiro suado numa malemolencia de fazer gosto. A Estação Ferroviária na Calçada, a Igreja dos Mares, o Largo de Roma. Ah, porreta, tavam chegando, tavam chegando, a Avenida Dendezeiros, uma água-de-coco no abafamento do caminho. Ói, ela, A Colina Sagrada! A Igreja do Bonfim, Oxalá, meu pai! Suba aí marinheiro, rapidinho, lá estaria ela, bonita, misteriosa, encantada, mas... Fechada. Só abre na sexta-feira, nas novenas, ou quando tem caravana de turistas. Não faria mal, saltariam, rezariam, acenderiam velas, isto é, se os vendedores de fitinha e balangandãs deixassem, é nem uma! Não faria mal, tocariam o barco, “Toca pra frente chofer!” Tomariam um sorvete na Ribeira e voltariam beirando o mar: Ponta de Humaitá, praia da Boa Viagem, algumas fisgadas no coração esmiuçado boiando no dendê quente e, ele, Valdivino, não ia dizer mais nada, nem que está isso, nem que está aquilo, nem que está aquiloutro, pra depois o povo e a patroa, a Iaiá dele, não dizer que o Ioiô dela estava muito rememorento, saudosento, e esculhambando a Bahia. Esculhambando não, só pensava tudo isso por que gostava muito daquela terra, mas que dá uma dor retada no peito vê ela assim daquele jeito e maneira, toda escalifada, Ah isso dá! É de pinicar o coração bem miudinho, que nem moqueca de siri catado, tanto descaso e desleixo dos governantes para com a cidade da Bahia.
Pensando bem, talvez fosse melhor não ir ao encontro do amigo, não. Pouparia o compadre, amigo e irmão de tamanho sofrimento. Ele também não ia se importar de não ir ao passeio, contanto que tivesse uma águazinha-de-coco, uma redinha, uma brisazinha e um violão, aí, estaria tudo porreta, nos conformes. Dorival, mermo, era quem sempre falava que queria conhecer Maracangalha, e nunca foi, convidou Anália, ela não quis ir, ele disse que ia só, deu uma chuvinha, redinha, aí piorou, deu banzo, preguiça mermo, chamou Valdivino, adulou todos os companheiros, disse que todo mundo ia de linformes brancos, chapéus de palha, tudo nos trinques, nada, ninguém moveu uma palha, todo mundo na marmota, Maurino, Dadá e Zeca, nada, não foram porque lá em Maracangalha não tinha mar, isso sim! Valdivino do Amor Divino queria tanto encontrar o amigo, mas era melhor assim, era melhor não encontrar, coração só se tem um e depois só louco amar como ele amou, se fizer bom tempo amanhã, se fizer bom tempo amanhã, Valdivino do Amor Divino vai, mas se por inxemplo chover, mas se por inxemplo chover, não vai... E saiu, encarquilhado, cantarolando pela beira-mar até sumir na imensidão de areia e mar de Caixa-Pregos.
Eduardo Calazans
dudacalazans@gmail.com
Dramaturgo e escritor, membro da sociedade brasileira de autores teatrais
Anexo: Trecho do filme Estrela da Manhã dirigido por Oswaldo Marques de Oliveira lançado em 1950, baseado em argumento de Jorge Amado. Cena com Dorival Caymmi e Dulce Bressane.
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