sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Pequeno Dicionario da Cozinha Baiana

Verbete-C Caruru de Sete Meninos

Ainda hoje, mesmo nas casas onde diz que o “caruru não é de preceito”, ricos e pobres da Bahia dão de comer aos santos mabaças, colocando a alegria da infância em um plano sagrado, vivenciando intensamente o sincretismo de
princípios católicos e africanos. 
E, acima de tudo, renovando a fé e esperança na vitalidade das crianças, através de seus principais representantes no mundo espiritual do povo baiano, por intermédio de São Cosme e São Damião.

A mesa diz respeito à comunhão para a cultura afro-baiana, há uma representação das comidas de santo, todas devidamente colocadas em gamelas numa referência ao ajeum, refeição comunitária, compartilhada com os orixás e os homens.
“Não serás amigo de teu amigo até que tenhais comido juntos uma porção de sal”, diz um provérbio árabe. 
E isso supõe tempo compartilhado, conversação prolongada, confidências entre amigos... Compartilhar a mesa é o grande símbolo da convivialidade, da reconciliação e da inclusão (Is. 25,6-8).

“São Cosme mandou fazer
A sua camisa azul
No dia da festa dele
São Cosme quer Caruru
Vadeia Cosme, vadeia!
Vadeia Cosme, vadeia!”
“Cosme e Damião
Vêm comer teu Caruru
Que é de todo ano
Fazer Caruru pra tu
Vem cá, vem cá, Dois-dois
Vem cá, vem cá, Dois-dois"


Uma tradição que se mantem, segundo a peculiar tradição afro-luso-baiana, segundo consta existiam sete irmãos: Cosme, Damião, Doú, Alabá, Crispim, Crispiniano e Talabi, conta Odorico Tavares, em seu livro “Bahia – Imagens da terra e do povo”.

A Nigéria, inclusive, é o país com o maior índice de nascimento de gêmeos no mundo inteiro.
No modo africano de homenagear os Ibeji e também outros orixás, o pedido de esmola para a preparação da comida é um ponto fundamental. A mesma tradição já existiu na Bahia,
Ibejis, os orixás gêmeos, por Carybé
mas foi abandonada pela maioria das pessoas. Entretanto, ainda é possível encontrar quem mantenha esse costume, inclusive fora da Bahia.

Para o antropólogo Ordep Serra, existem muitos artigos publicados sobre o tema, no entanto pesquisas sistemáticas são quantificáveis. Segundo autor, é necessário mergulhar mais profundamente no candomblé para compreender os erês. “

Existem várias recomendações para quem faz o caruru, que cada um escolhe obedecer ou adaptar. Quem oferece o caruru deve cortar o primeiro quiabo e, depois de pronto, colocar a comida aos pés dos santos em vasilhas novas e fazer um pedido. 
A galinha do xinxim não pode ser comprada morta. Durante a festa não deve ser servida bebida alcoólica. E quem encontrar no prato um quiabo inteiro deve oferecer um caruru no próximo ano. 

Restaurantes mantem a tradição!
Alguns Chefs de Cozinha preparam o Caruru de Sete Meninos em seus restaurantes, é o caso do Soteropolitano
Desde que abriu o restaurante, há 14 anos, o baiano Júlio Valverde oferece gratuitamente o caruru. 
A devoção foi herdada da sogra, católica. "Ela nos ajudou muito na inauguração. Morreu três meses depois, de câncer." O caruru virou uma homenagem a ela. É comida para 200 pessoas, em pratos montados com 12 itens: caruru, vatapá, acarajé, xinxim de galinha, feijão-fradinho de dendê, arroz, farofa de dendê, pipoca, rapadura, coco, cana-de-açúcar e banana-da-terra, ou no restaurante da Chef Leila Pires, no Restaurante do Instituto Tomie Ohtake. 
Obs. Esta iguaria nunca deve ser cobrada.

No candomblé, é costume servir, nesse dia, o “caruru dos meninos”. Segundo Vilson Caetano de Sousa Junior, no livro O Banquete Sagrado (editora Atalho), a cerimônia começa com a ida à feira para “escolha dos quiabos, do feijão, das aves que se vai oferecer a Ibeji [do yorubá, Cosme e Damião] e dos demais ingredientes para o preparo do seu caruru”.
Ubuntu "humanidade com os outros" ou "sou o que sou pelo que nós somos".
Uma pessoa com Ubuntu está aberta e disponível para outros, apoia os outros, não se sente ameaçada quando outros são capazes e bons, baseada em uma autoconfiança que vem do conhecimento que ele ou ela pertence a algo maior e é diminuída quando os outros são humilhados ou diminuídos, quando os outros são torturados ou oprimidos.


Segundo alguns autores, como Moura (1983), Sodré (1979) e Sandroni (2001), ao reconstruírem a formação do samba urbano carioca no início do século XX, explicitaram as relações entre esse e os terreiros da Cidade Nova. 
As conhecidas casas das "tias baianas", como da Tia Ciata, eram ao mesmo tempo moradia, local de culto e de lazer, e funcionavam como esteio tanto para o desenvolvimento do samba quanto do próprio candomblé. 
O ritual da mesa rompe as distâncias e garante a proximidade, estabelece o estreitamento dos vínculos com o diferente. Junto à mesa, cada um se coloca diante do outro, não importando as diferenças de vida, opções, modos de ser... A comunhão supõe o rito da inclusão e da partilha.

O simples gesto de passar ao outro um pedaço de pão é um gesto despojado de poder, de segundas intenções. 
A espiritualidade da mesa exala gratidão aos que dela se aventuram em assentar-se. Com isso ela nos interpela a vivermos uma espiritualidade da gratuidade e do serviço de uns para com os outros. 
O culto sagrado dos nagôs (iorubás), dentre os outros povos que aportaram nas Américas, foi o que mais se sobressaiu pela beleza ritualística e riqueza simbólica do seu panteão mítico, foi a tradição espiritual que permaneceu mais preservada desde a diáspora africana até o novo mundo rumo ao infame trabalho escravo. 
O culto aos orixás, deuses iorubás, nasceu na Nigéria, Daomé e Togo. Nas Antilhas, Cuba e no Brasil este culto permanece vivo e apesar do sincretismo e dos preconceitos raciais,
sociais e religiosos, conseguiu sobrepujar sanções e opressões institucionais pela força mágica e mística da tradição.
“Ibeji é cultuado na madeira pelo laço que tem com seu pai Xangô"

A Gamela é muito simbólica no Caruru de Sete Meninos, ela representa uma vasilha com a forma de uma tigela ou bacia, esculpida em madeira retirada de árvores cuja madeira é macia, um exemplo é agameleira. Ela pode ser redonda ou ovalada e é utilizada, quer na alimentação humana, circundada por Sete meninos escolhidos com prévio rigor, onde são colocados todas as oferendas, ali é comido de forma coletiva

Apesar de construção aparentemente simples, a gamela, que atualmente é utilizada apenas por pessoas mais pobres ou como ornamentação em casas mais abastadas, não deve ser considerada um utensílio culinário. Foi necessário inventar primeiro os instrumentos de ferro para a produzir. 

A simbiose com as crenças trazidas pelos escravos africanos aconteceu a partir da mitologia dos iorubas. 
Segundo a Griô Nancy de Souza (Dona Cici), contadora de histórias da Fundação Pierre Verger, diz que os mabaças ou gêmeos Ibejis (ib = nascer e ejis = dois) foram fruto do amor de Xangô com Iansã, criados por Oxum, a entidade das águas doces. Eram um casal, macho e fêmea, dualidade da energia da vida. 
Os ibejis representam a prosperidade, a energia e a alegria infantil. A eles recorrem os adeptos quando uma criança adoece. Os rituais dos terreiros, no dia 27, são de agradecimento pela cura de alguma doença e pedidos pela vida e saúde das crianças.
Entre senzalas e casas grandes, mães pretas e vigários, batuques e orações, o caruru de Cosminho tornou-se uma tradição tipicamente baiana, manifestação de uma fé única, como só acontece na Bahia. Na paróquia de São Cosme, que fica no bairro negro da Liberdade, há missas de hora em hora, das seis da manhã às sete da noite. A mais solene, celebrada pelo cardeal Dom Geraldo Magela Agnelo, acontece às 10 e a procissão pelas ruas do bairro, com imagem dos santos, às 17 horas. É comum a presença de pessoas na igreja em trajes de candomblé e a distribuição de balas e brinquedos para as crianças na porta do 

O Caruru de Cosminho
A mesa do Caruru de São Cosme – ou de Cosminho servido nas residências baianas no dia 27 é farta e trabalhosa. Geralmente, uma tarefa executada em mutirão por toda a família, vizinhos e amigos desde o amanhecer do dia com o corte dos quiabos, a feitura dos pratos que o acompanham, a decoração e enfeite da casa e a arrumação da mesa para receber bem os convidados e, sobretudo, as crianças.
O caruru, prato principal, é colocado na mesa ao lado dos acompanhamentos: acarajé, abará, vatapá, feijão de azeite,
banana da terra frita, arroz branco, xinxim de galinha, feijão preto, milho branco cozido, farofa de dendê, pipoca, rolete de cana, pedaços de coco seco e rapadura, no mínimo. 
No preparo do caruru, a dona da casa coloca sete quiabos inteiros e quem tiver um deles no prato tem a obrigação de oferecer um caruru em sua residência, no ano seguinte.
Os convidados devem ser servidos um a um e recebem o prato arrumado com todos os elementos. A festa deve começar por volta das cinco da tarde e só termina à meia-noite.  

 A festa não é feita para os grandes: pertence exclusivamente aos meninos, que são os verdadeiros "comensais". 
Maria de São Pedro
Dona Maria São Pedro de Jesus deu o grito de caruru-dos-meninos. Sobre a pequena mesa estavam todos os pratos da festa: caruru, pipocas, amendoim, farofa de azeite, cana picadinha, banana frita, arroz branco, abará, abóbora, acarajé, milho branco, côco em pequenos pedaços, galinha em molho pardo e ovo cozido. 
Uma bacia foi cheia com caruru e todo o cardápio de São Cosme. No chão, sobre um pano forrado, dona Maria São Pedro pôs o alimento, chamando os sete meninos mais jovens. Sete crianças entre cinco e oito anos ficaram abaixadas em torno da bacia com caruru. 
As outras crianças e os adultos, inclusive os dois repórteres, começaram a bater palmas, em ritmo forte, enquanto dona Maria fazia a chamada dos meninos: "Vem cá, vem cá, Dois-Dois! Vem cá, vem cá, Dois-Dois!…". 


Os pequenos "comensais" mantêm as mãos, por um minuto e silenciosamente, no caruru, começando em seguida o jantar simbólico de São Cosme e São Damião. 
Os meninos vão comendo o caruru com sofreguidão, comendo a parte do alimento sagrado que lhes coube. Aparecem cantigas que todos versejam com entusiasmo, sempre no ritmo das palmas: Eu te dou de comê, Dois-Dois! / Eu te dou de bebê, Dois-Dois! 
Os versos são repetidos várias vezes, não passando de sete, dando seqüência a outros.

"São Cosme mandou fazer
Uma camisinha azul
No dia da festa dele
São Cosme quer caruru

Vadeia, Cosme, vadeia
Vadeia, Cosme, na areia!
Vadeia, Cosme, vadeia
Vadeia, Cosme, na areia!"

Outros cânticos são entoados:


Eu tenho pai
Que me dá de comê
Eu tenho mãe
Que me dá de bebê

Comido o alimento santo, os meninos esperam o sinal de levantar as mãos. Todos estão satisfeitos, e as crianças, ou estão sérias, ou sorriem. Começa então a segunda parte da festa. As palmas recomeçam e se inicia o canto: Louvado seja, ó meu Deus / Que Cosme e Damião comeu! Repetem-se três vezes esses versos. Depois, os sete meninos e a dona da casa seguram nas bordas da bacia balançando-a no ritmo lento da cantiga:

"Vamos levantar
O cruzeiro de Maria
No céu, no céu
Com muita alegria"

Em seguida os meninos carregam a bacia para dentro de casa. Principia-se, então, o caruru dos grandes, que comem de mistura com as outras crianças que não tiveram o privilégio de participar do caruru-dos-meninos" (Cláudio Tavares, ‘O caruru-de-dois-dois’, in Revista do Globo, 426, Porto Alegre, 1947, p. 56-57)



(CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro)

Nenhum comentário:

Postar um comentário