sexta-feira, 14 de agosto de 2015

O FIM DA FILOSOFIA E A ESSÊNCIA DA TÉCNICA NA MODERNIDADE

O fim da filosofia na era moderna é uma temática tratada por Heidegger em sua conferência intitulada O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. 
Para ele, o fim da filosofia enquanto fim da metafísica é uma possibilidade para uma nova
filosofia, a saber, uma filosofia fundamentada na alethéia
Mas o que seria alethéia? No grego, a palavra “alethéia” é composta a partir do prefixo de negação “a” e pelo substantivo “léthe” que significa esquecimento. Sob estas condições, alethéia é aquilo que não é esquecido, que não estar perdido, que não foi ocultado. A realidade enquanto alethéia se define pela evidência na qual a própria realidade se revela no momento em que se manifesta em quem a conhece.
Nessa busca por um novo sentido para a filosofia e tendo em vista sua crise, Heidegger lança duas questões. A primeira é: “em que medida entrou a filosofia, na época presente, em seu estágio final?” Filosofia é metafísica, diz Heidegger, pois ela pensa o ente em sua totalidade. Dito de outra forma, o ser do ente é o tema apresentado desde o começo da filosofia, sendo, portanto, seu fundamento.
Asseveramos que é importante salientar aqui que quando Heidegger fala em fim da filosofia, ele não está tratando de fim de um processo. Ele está se referindo a um fim enquanto acabamento, mas também não é um acabamento no sentido de se atingir a plenitude, a perfeição. Não há uma filosofia melhor do que outra (Hegel não foi melhor que Kant, Platão não superou Parmênides…). A Filosofia enquanto acabamento atinge aqui um sentido originário de reunião. Ou seja, reunião de pensamento. Compreender a filosofia como a cessação do modo de pensar ou fim de um processo seria uma conclusão apressada. O fim da filosofia enquanto acabamento configura uma concentração de possibilidades.
Nesta perspectiva, Heidegger reconhece um fenômeno iniciado desde a filosofia grega: o desenvolvimento das ciências. Com o desenvolvimento ocorre também a independência e a autonomia que Heidegger vê como expressão deste acabamento. Cita como exemplo a Sociologia, a Psicologia, a Lógica aplicada à logística e a Semântica.
É a este desdobramento da filosofia em ciência, quer dizer, a crescente autonomia da ciência em relação à filosofia, que Heidegger vai chamar de “acabamento legítimo da filosofia”. Isto é, a filosofia em seu estado acabado. Ela se dilui no caráter científico em que a humanidade se volta por meio da práxis social, dando origem à técnica. A técnica passa a marcar e orientar as ações decisivas do homem em relação ao planeta. Mas o que seria a técnica?
Em seu texto “A questão da Técnica”, Heidegger chama atenção para o modo como a técnica é concebida na Modernidade. Segundo ele, a técnica é compreendida tanto como o meio para atingir um determinado fim, quanto como uma atividade do homem. Assim, a junção de ferramentas, aparelhos e máquinas, quando direcionados para uma ação prática, constituem a técnica. Deste ponto de vista, a própria técnica prefigura também um instrumento, pois como tal, pode ser manuseada. Para ele, a “concepção corrente de técnica de ser ela um meio e uma atividade humana pode se chamar, portanto, a determinação instrumental e antropológica da técnica” (HEIDEGGER, 2001, p. 12).
Entretanto, esta forma de se conceber a técnica coloca o homem moderno numa relação de adestramento com a técnica. Suas energias são voltadas para um esforço no sentido de querer dominar e manipular a técnica. A técnica enquanto instrumento se torna objeto de manuseio, uma espécie de ferramenta para o homem pôr em prática aquilo que ele deseja. O sucesso ou o fracasso do homem moderno depende essencialmente da relação de domínio e manuseio que este possui com a técnica; pois, em época de grandes desenvolvimentos científicos e tecnológicos, acredita-se que possuir o domínio da técnica é de fundamental importância para o “progresso” do homem moderno.
A filosofia cede lugar às ciências que são mediadas pela técnica. Aquilo que ao longo do tempo a filosofia tentou por etapas explicar, agora é explicado pela ciência. As diversas regiões do saber como natureza, história, direito, arte são agora subdivididas e tratadas pela ciência. A teoria passa a ter também um novo sentido. Diferentemente de seu sentido original de contemplação, de ato das faculdades do espírito para conhecer o inteligível, a teoria agora tem o sentido de pensamento racional que representa e calcula.
É neste contexto que o fim da filosofia revela a vitória do pensamento técnico-científico sobre o filosófico. Fim da filosofia significa aqui o seu desdobramento na ciência. Heidegger indaga se seria isso a realização daquilo que um dia a filosofia apostou. Ou será que existe ainda na filosofia a possibilidade de trazer a tona um pensamento que foi esquecido e que pode ainda ser experimentado e assumido?² Este pensamento ainda não foi acessado nem pela filosofia, enquanto metafísica, nem pelas ciências. Por isso, Heidegger introduz a segunda questão: que tarefa está reservada ainda para o pensamento no fim da filosofia?
Mais adiante o próprio Heidegger responde: “impõem-se ao pensamento a tarefa de atentar para a questão que aqui é designada como clareira” (HEIDEGGER, 1999, p. 103). Mas o que vem a ser clareira? A clareira é a livre dimensão do aberto, a abertura, o lugar cuja “questão da filosofia chega a aparecer a partir de si mesma e para si mesma, tornando-se assim presença” (HEIDEGGER, 1999, p. 102).
Segundo Heidegger, em toda a história da filosofia, tanto na metafísica quanto no seu contraponto – o positivismo – é utilizada a linguagem de Platão, ou seja, a exposição do ser do ente, o eidos, a ideia. Entretanto, na filosofia a clareira como aquilo que impera no ser, aquilo que traz à presença, permanece sempre impensada. A filosofia não se dá conta de sua presença e na busca pelo sentido do ser, o ser é compreendido como ente.
Heidegger aponta Parmênides como o primeiro filósofo a meditar sobre o ser do ente. Em seu poema aparece a palavra alétheia, o desvelamento. O desvelamento é a própria clareira do aberto. Nesta clareira reside a possibilidade do aparecer, a possibilidade da presença acontecer. No parágrafo 44 de Ser e Tempo, no ensaio Sobre a Essência da Verdade e na conferência O fim da filosofia e a tarefa do pensamento, Heidegger detalha minuciosamente o conceito de alétheia enquanto desvelamento.
Conceituando o sentido da alethéia traduzida aqui como desvelamento e não como verdade enquanto adequação da coisa ao intelecto, Heidegger indaga se este pensamento seria uma mística sem fundamento, uma mitologia de má qualidade, uma espécie de irracionalismo ou uma negação da razão. Ora, se pegarmos a palavra alétheia seguindo a tradução heideggeriana a resposta será negativa! Conceber alétheia como aquilo que se desvela, como clareira que aparece e ao mesmo tempo se oculta, só é tomado como irracional pelo fato da racionalização técnico-científica dominar a era atual justificando-se através da sua “inegável eficácia”, ou seja, mediante resultados demandados pela observação, quantificação, mensuração.
Entretanto, esta eficácia é um fenômeno secundário, ela não diz nada sobre aquilo que garante a possibilidade do racional e do irracional, daquilo que vem primeiro. Aqueles que praticam este ato eficaz não se perguntam pela causa primeira daquilo que o levou até ali. Tal eficácia está submetida aos limites da racionalidade técnico-científica em que o ponto de partida é o eu-sujeito que tudo determina.
Heidegger diz que “talvez exista um pensamento mais sóbrio do que a corrida desenfreada da racionalização e o prestígio da cibernética que tudo arrasta consigo” (HEIDEGGER, 1999, p. 107-108). Este pensamento quiçá tenha relação com a mudança de foco. Pois o questionamento de Heidegger acerca dos desdobramentos técnico-científicos na era moderna, pode ser entendido como uma busca pelo caminho onde o homem possa assumir seu destino como ente essencialmente pensante. Trata-se da busca pela essência da técnica, a reflexão sobre o fundamento daquilo que está sobreposto como realidade.
Heidegger busca a essência da técnica, para ele a técnica não é um simples meio, não é um instrumento, não é uma mera ação em vista de um determinado fim. “A técnica é uma forma de desencobrimento” (HEIDEGGER, 2001, p. 17). É esta concepção quem nos leva à essência da técnica, ou seja, é na compreensão da essência da técnica que chegamos ao desencobrimento, à verdade (alétheia). O próprio e constitutivo da técnica não está, portanto, fundamentado no seu fazer ou no seu manusear, não se encontra na aplicação dos meios para se construir algo, mas tão somente, na sua essência onde a verdade (alétheia) se desvela. Desse modo, na busca pela essência da técnica acabamos por encontrar o desencobrimento e consequentemente, neste desencobrir, neste desvelar, acontece a alétheia.
O desencobrimento ocorre quando o homem deixa-se ser tomado pelo real, quando ele é chamado a participar e se lança numa escuta obediente. Em outras palavras, quando o homem obedece ao chamado do real e se coloca em escuta, aí se dá desencobrir. De modo que:
Sempre que o homem abre olhos e ouvidos e desprende o coração, sempre que se entrega a pensar sentidos e a empenhar-se por propósitos, sempre que se solta em figuras e obras ou se esmera em pedidos e agradecimentos, ele se vê inserido no que já se re-velou (HEIDEGGER, 2001, p. 22).
O desencobrimento se dá no âmbito da disponibilidade (Bestand). Tal disponibilidade somente se torna possível ao homem que se volta para aquilo que é não mais como um objeto, mas sim como possibilidade para o desencobrir. Um avião pode perfeitamente ser representado como objeto, entretanto, ao alçar vôo, o avião se desencobre ao tornar possível a possibilidade de se revelar como meio de transporte. Porém, diferentemente do homem, a máquina (no caso o avião) não tem como se dá conta disso. Apenas ao homem é permitido essa compreensão, esse desencobrir, essa disponibilidade… Uma vez que “considerada como disponibilidade, a máquina não é, absolutamente, autônoma nem se basta a si mesma. Pois tem a sua dis-ponibilidade exclusivamente a partir e pelo dis-por do disponível” (HEIDEGGER, 2001, p. 21).
Dispor-se para o desencobrimento é deixar o real fluir naturalmente. É deixar o pensamento mergulhar mais fundo no real e não no aparente. É perceber que por trás do aparente existe algo mais origina que vela e se revela no desencobrimento. Dispor-se para o desencobrimento é deixar-se livre para o mistério originário que circunda o real. É perceber, não pela autonomia da consciência, mas pela abertura, que por trás da representação há algo mais originário, mais veemente, mais próximo do Ser. Neste contexto, Heidegger afirma que “não foi Platão que fez com que o real se mostrasse à luz das ideias. O pensador apenas respondeu ao apelo que lhe chegou e que o atingiu” (HEIDEGGER, 2001, p. 21). Os gregos, que não trabalhavam com a ideia de sujeito/objeto já apontavam para isso pois, segundo eles, “o primeiro, no vigor de sua regência, a nós homens só se manifesta posteriormente” (HEIDEGGER, 2001, p. 25).
É se direcionando para este foco que o homem, lançado no aberto, pode enfim, apropriar-se da essência da técnica e de si próprio. A técnica, a cibernética perde então seu valor superficial, de aparência, de manuseio, de instrumento, de simplesmente dado e lançado ao mundo. Ao conceber a essência da dimensão técnico-científica, o homem compreende também o seu fundamento, e com isto, é então possibilitado a ele uma nova maneira de situar-se no mundo da vida.
A esta disponibilidade para com a essência da técnica, Heidegger denomina “com-posição” (Ge-stell), pois há aí uma junção, uma união que coloca o homem em consonância direta com a técnica. Na composição o homem naturalmente se dispõe ao desencobrir, ao compreender o desvelar e ao perceber o acontecimento originário do real. De modo que “na com-posição dá-se com propriedade aquele desencobrimento em cuja consonância o trabalho da técnica moderna des-encobre o real como dis-ponibilidade” (HEIDEGGER, 2001, p. 24).
Porém, para que isso ocorra é preciso que o homem abandone e se desapegue da representação enquanto única maneira de se conhecer o real. No momento histórico em que passamos,³ acreditamos que a única forma de se conhecer o real é a partir da elaboração de teorias, verificando-as através de cálculos e manipulações. Mas, no que concerne ao modo de ser do homem, a sua essência propriamente dita, a representação, a teoria e a manipulação empírica já não se mostram suficientes.
Talvez seja por isso que Heidegger encerra a sua conferência sobre “o fim da metafísica e a tarefa do pensamento” afirmando que “a tarefa do pensamento seria então a entrega do pensamento, como foi até agora, à determinação da questão do pensamento” (HEIDEGGER, 1999, p. 108). Em outras palavras o filósofo alemão quer dizer que o homem moderno está inserido em um período de transição – o advento do pensamento técnico-científico.
Seria necessária então, uma busca pela essência da técnica, pois em tempos modernos, a essência da técnica possibilita a capacidade de pôr o homem no caminho que leva ao desencobrimento. A disponibilidade põe assim, o homem nesse caminho, nesse destino histórico em direção ao aberto, ao verdadeiro, ao real. O homem moderno parece compreender a técnica olhando-a como um método para um determinado fim, como um instrumento ou como uma ação. Contudo, este modo de proceder apenas o condiciona à vontade de querer dominá-la e com isso, seu empenho passa as margens da essência da técnica que, como consequência, não torna possível o desencobrir.
Neste novo destino histórico, o homem precisa compreender a essência da técnica de maneira originária, ele precisa adentrar no desvelamento da técnica. Isto será possível mediante a meditação que ocorre na abertura, no desvelar do real, naquilo que está sempre se abrindo como uma possibilidade de se compreender o real como ele é. Deste modo, não há fim da filosofia, mas tão somente uma mudança de foco. O real não deve ser compreendido apenas através do pensamento técnico-científico, mas também através da busca pela essência do seu fundamento.
Segundo Heidegger, não há perigo algum com a técnica. Ela é própria da atividade humana. O problema reside justamente no mistério de sua essência. Assim sendo, não é o desenvolvimento desenfreado de máquinas e equipamentos técnicos que ameaça o homem, mas a sua recusa em se deixar disponível para a essência da técnica. É esta posição do homem frente à técnica que o deixa vulnerável, pois nesta recusa sua essência já foi atingida. A indisponibilidade para a essência da técnica ameaça a possibilidade de poder voltar para um desencobrimento que seja mais originário, para uma “verdade mais inaugural”.
Márcio J. S. Lima – marciohistoriaefilosofia@gmail.com 

Notas:
[1] Doutorando pelo Programa Integrado de Doutorado em Filosofia UFPB-UFPE-UFRN.
2 O Esquecimento do ser
3 Revolução técnico-científica
Referências:
HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: Ensaios e conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 11-38.
________________. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores) p. 89-108.
________________. Ser e tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcanti Schuback. Petrópolis: Vozes, 2007.
________________. Sobre a essência da verdade. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores) p. 149-170.

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