A origem da nossa alimentação nos relatos do folclorista e pesquisador Câmara Cascudo e as mudanças de hábitos trazidas pela modernidade
Por Mariana Corção
A globalização e o desenvolvimento tecnológico têm causado grandes
mudanças nos hábitos alimentares em todo o mundo. Essas mudanças têm
sido mais sentidas e refletidas no mundo ocidental desde o início do
século XX. Nas décadas de 1920 e 1930, o tema foi amplamente debatido em
diferentes perspectivas. Nesse contexto, os estudos médicos voltados
para as propriedades nutritivas dos alimentos alcançaram as políticas
públicas. Era importante para os Estados terem um corpo de trabalhadores
fortes e saudáveis.
A preocupação com a qualidade nutricional da alimentação popular gerou
polêmica. Havia quem defendesse a tradição alimentar, que era o caso do
brasileiro Câmara Cascudo, e havia quem elogiasse a perspectiva de uma
cozinha totalmente original, como, por exemplo, os futuristas italianos.
Na obra História da Alimentação no Brasil, Cascudo cita em diferentes
trechos a obra do médico espanhol Antonio Castillo de Lucas, Adagiário
da Alimentação. Um e outro autor se conectam pelo pensamento folclórico
em que o conhecimento gerado a partir da experiência histórica das
sociedades é relevado. Nessas experiências, registradas a partir de
permanências concretas da cultura popular, residiria o significado
social da cozinha de cada nação.
Numa outra perspectiva, Filippo Tomaso Marinetti, líder do movimento
futurista italiano, apresenta-se favorável a uma cozinha futurista na
Itália em seu manifesto de 1930, contrariando a permanência da cozinha
tradicional. Entre as várias propostas para colocar a cozinha nacional
no mesmo passo que o desenvolvimento tecnológico do período, Marinetti
propõe a abolição do macarrão na alimentação italiana, argumentando que
essa seria uma das principais razões para a lentidão e o pessimismo do
trabalhador italiano. Não faltou quem saísse em defesa do macarrão,
principalmente na Itália.
Na década de 1920, período de efervescência intelectual no eixo Rio-São
Paulo, o potiguar Câmara Cascudo começou a esboçar artigos, ensaios e
livros nos quais retratou aspectos da cultura sertaneja brasileira. Na
leitura de sua correspondência com Mário de Andrade, notamos a
disparidade da realidade brasileira entre o crescimento econômico do
Sudeste e a estagnação da economia nordestina. A industrialização
renovava a paisagem e a vida das principais cidades do Sudeste, enquanto
no Nordeste prevalecia um sentimento nostálgico dos tempos coloniais,
que regia a economia e a cultura brasileira.
Na década de 1960, quando Cascudo escreveu História da Alimentação no
Brasil, a economia no litoral nordestino já acompanhava o
desenvolvimento econômico do Sudeste e viabilizava a entrada do
“progresso” no Sertão. Para Cascudo, o progresso vinha acompanhado da
angústia, sentimento que descreve como consequência de se viver sem
tempo, sem espaço, sem refeição, socialmente desintegrado. O rito
alimentar, do preparo à refeição, é valorizado pelo pensador enquanto um
meio de integração social, e as tradições são elementos cruciais para
este.
O contexto privilegiou o olhar analítico de Cascudo, que buscou
fundamentar e discutir sua argumentação em favor da tradição alimentar
em História da Alimentação no Brasil numa vasta bibliografia (ao todo,
são 614 notas bibliográficas). Uma das obras mais citadas nas notas é a
história da alimentação vegetal do professor de Botânica polonês Adam
Maurizio. No livro, cuja análise está centrada no cultivo agrícola desde
a pré-história até o contexto da escrita da obra (1932), Maurizio
observou duas características da alimentação moderna: a primeira, com a
superabundância possibilitada pelo desenvolvimento tecnológico, grande
parte da população ocidental deixou de ser produtora para ser apenas
consumidora de alimentos, e, a segunda, as trocas comerciais
intensificadas em nível global a partir do período mercantilista teriam
gerado uma tendência para a uniformização da alimentação.
Ambos esses aspectos da vida moderna estariam na base da angústia
moderna identificada por Cascudo. Entendemos assim que, ao propor a
historicidade da alimentação brasileira, mais do que uma proposta de
esquematizar nossa cozinha nacional, Cascudo busca suas raízes para
fortalecer os costumes tradicionais diante dos desafios propostos pela
vida em tempos de consumo e homogeneização.
A alimentação brasileira, segundo Cascudo, compreende comida e
costumes, e por isso, divide sua obra em duas partes: História da
Alimentação no Brasil e Sociologia da Alimentação no Brasil. A primeira
parte remete ao período colonial, no qual o autor localiza o momento
fundador do Brasil e da cultura nacional, logo, da alimentação
tradicional brasileira. Índios, africanos e portugueses teriam
contribuído de formas distintas nas raízes de nossa alimentação. No que
se refere aos alimentos, do cardápio indígena Cascudo destaca a
mandioca, nomeada por ele como a “rainha do Brasil”, o inhame, o
palmito, o milho, o amendoim, o feijão, a banana, as pimentas e frutas
como caju, abacaxi, goiaba, cajá, maracujá e mamão. Da dieta africana,
ressalta a importância do leite de coco e das pimentas. Da ementa
portuguesa, cita a galinha, o ovo, a vaca, o porco, a cana-de-açúcar, o
trigo, o arroz, a alface, a couve, o sal, o coentro, a salsinha, a
cebolinha, a hortelã e frutas como a maçã, a pera, o pêssego, a uva e o
limão.
A conjugação desses ingredientes seguiria diferentes técnicas de
feitura das comidas. Segundo Cascudo, dos indígenas teríamos herdado a
farinha de mandioca, o pirão, o beiju, a paçoca, a moqueca e o caruru.
Dos africanos, o cuscuz, que no Norte da África era feito com arroz ou
farinha de trigo, mas que por aqui foi abrasileirado com a farinha de
milho. Se para Cascudo a cozinha brasileira seria marcada pela presença
de ingredientes da terra, como a farinha de mandioca, sua constituição
teria sido viabilizada pela força da mão colonizadora portuguesa.
Técnicas como a de secar a carne, cozinhar vegetais e fritar alimentos
teriam chegado ao Brasil com suas naus. Outro fator crucial destacado
por Cascudo é o conceito de alimento salgado e doce. O sabor da comida
com sal e dos doces feitos com açúcar era desconhecido pelos índios. Em
sua vasta obra, Câmara Cascudo se refere a alguns pratos nacionais como a
feijoada, o sarapatel e o vatapá, artes culinárias resultantes dessa
mistura de técnicas e ingredientes indígenas, africanos e portugueses. O
autor menciona também a relevância da banana com queijo como sobremesa
nacional, ressaltando a importância da imigração italiana para a
valorização do queijo no Brasil.
Além dos sabores, a cozinha brasileira para Cascudo seria constituída
por um ritmo de refeições que eram distintas na cultura indígena, na
africana e na portuguesa no período da colonização do Brasil. Dos
portugueses herdamos as denominações pequeno almoço (café), almoço e
jantar. Ao longo dos anos, o lugar e o horário da refeição foram mudando
de acordo com o ritmo de vida das pessoas. Cascudo menciona que
antigamente o café era às 6 da manhã, o almoço às 9, o jantar às 3h30 e a
ceia às 6 da tarde. Além disso, as casas coloniais possuíam amplas
cozinhas e sala de jantar, ambientes que têm diminuído de tamanho no
contexto do século XX (ou mesmo, inexistindo).
Cascudo entendia que, por meio do gosto, as preferências pelos sabores
brasileiros poderiam resistir às propagandas dos alimentos
industrializados. O ritmo das refeições, contudo, estaria submisso ao
passo da vida nas grandes cidades e penso que essa era uma de suas
maiores angústias.
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Mariana Corção é historiadora e pesquisadora da alimentação brasileira
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