segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Um dossiê sobre maus causados por agrotóxicos a população

Enquanto governo dá as costas ao tema, cientistas provam as diversas nocividades e perigos dos agrotóxicos para a saúde humana

Por Ulisses Lalio


Um dossiê sobre maus causados por agrotóxicos a população
 O que você faria se descobrisse que seu leite materno possui resquícios de substâncias cancerígenas e que causam má formação congênita, ou mesmo envenenamento? O que faria se soubesse que cada brasileiro consome 5,2 litros de veneno por ano? Sim, eu disse veneno, ou como a Lei nº 8.588, de 27 de novembro de 2006 denomina produtos agrotóxicos, seus componentes e afins. E o governo, o que fala sobre o assunto, há políticas públicas voltadas para tentar minimizar essas consequências na agricultura em grande escala? O que diz a legislação estadual sobre esse tema?

A lista de doenças e consequências do uso desses produtos nas lavouras de Mato Grosso pode ser vista no Dossiê Abrasco: Um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. O tema foi abordado no lançamento atualizado do livro, com 628 páginas, em Cuiabá, na Escola de Saúde Pública de Mato Grosso, no dia 27 de julho. Na ocasião, estiveram presentes autores do livro de Mato Grosso como o professor e pesquisador da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso) Wanderley Pignati e autores vindos de outros estados, a exemplo da toxicologista da Fiocruz e pesquisadora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Karen Friedrich e da médica toxicologista Márcia Sarpa de Campos Mello, do Inca (Instituto Nacional do Câncer), que estuda a relação do câncer com o uso de agrotóxicos, como o glifosato, utilizado em larga escala na agricultura.

Consequências nefastas
Com mais de duas décadas de estudos, a lista das consequências é extensa. Entre as doenças que acometem trabalhadores e pessoas expostas aos agrotóxicos estão problemas psiquiátricos (depressão), neurológicos (mal de Parkinson), desreguladores endócrinos (diabetes, aborto), teratogênicos (anencefalia, espinha bífida, malformações cardíacas e intestinais), mutagênicos (defeitos no DNA de espermatozoides e óvulos) e câncer. As contaminações podem ocorrer pela água, por alimentos e pelo próprio ar.

E por que um debate dessa envergadura, que envolve o trabalho de vários pesquisadores regionais, nacionais e até internacionais, passou despercebido da maioria das pessoas? As respostas são complexas, mas a reportagem do Circuito Mato Grosso foi em busca de algumas delas.

O (des)interesse do governo
A reportagem do Circuito Mato Grosso tentou de várias formas conversar sobre o tema com o governo de Mato Grosso. Por meio de telefonemas, e-mail e demais meios de comunicação (WhatApp e SMS), porém não obteve resposta algum até o fechamento desta edição. A história é longa e já foi questionada na edição 508 deste semanário. Na reportagem, datada de outubro de 2014, com o título “Leite materno contaminado em 51 cidades”, o governo também não quis se pronunciar sobre a temática.

Assim como o sindicato patronal dos agricultores, a Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Mato Grosso (Famato), que representa os produtores estaduais – também foi procurada para opinar sobre o assunto e disse, por meio de sua assessoria de imprensa, que a instituição não dispunha de profissionais para abordar a pauta.

A Secretaria de Desenvolvimento Econômico (Sedec), gerida pelo secretário Seneri Paludo – que é uma criação do Governo Pedro Taques (PDT) e abrange as pastas de Indústria, Comércio, Minas e Energia; Turismo e parte da Secretaria de Desenvolvimento Rural – também ‘não teve agenda’ para responder aos questionamentos, apesar dos pedidos de entrevistas com antecipação de uma semana, para falar do assunto que diz respeito a pasta, conforme o decreto nº 2.283, de 9 de dezembro de 2009.

Em um primeiro momento a assessoria informou que “o assunto não tinha relação com a pasta”. Em um segundo momento houve a promessa de um resposta via e-mail, que não aconteceu.

No decreto em que o governo estadual regulamentou o uso, a produção, o comércio, o armazenamento, o transporte, a aplicação, o destino final de embalagens vazias e resíduos e da fiscalização de agrotóxicos, seus componentes e afins – também estão as respectivas competências do Estado. Como consta nos artigos 2º e 3º do decreto, é de competência da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Rural a fiscalização do cumprimento da legislação referente a agrotóxicos, resíduos, seus componentes e afins e do que é outorgado pela legislação federal vigente.

Entendedor do assunto e engenheiro agrônomo de formação, Paludo é ex-secretário de Política Agrícola do Ministério da Agricultura e anteriormente havia sido diretor-executivo da Famato. Além disso, foi secretário de Política Agrícola do Ministério da Agricultura e é pós-graduado em Planejamento e Gestão de Negócios. Foi superintendente do Instituto Mato-grossense de Economia Agropecuária (Imea), diretor executivo da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso, além de secretário executivo do Fórum das Entidades do Setor Produtivo do Centro-Oeste; membro da Câmara Setorial da Cadeia de Soja do Mapa e do Conselho de Desenvolvimento Agropecuário do Estado de Mato Grosso e conselheiro do Sebrae-MT. Esse currículo completo mostra que, mesmo que não fosse secretário de estado, estaria altamente capacitado para falar sobre o assunto.

Ações de combate ao uso de agrotóxicos
Enquanto o governo dá as costas para o tema, a agrônoma Fran Paula, que tem artigo científico e uma carta-denúncia publicada no Dossiê, explicou que o lançamento do livro teve o objetivo de ‘dar luz ao assunto’. “A intenção é levar informação científica de qualidade e alertar a população sobre os perigos comprovados dos agrotóxicos. Queremos envolver e mobilizar um grande número de pessoas para que elas se engajem nesta luta de defesa da saúde humana e do equilíbrio ambiental. Queremos mostrar, ainda, que existe a alternativa agroecológica de produção, um modelo economicamente viável que gera mais empregos e justiça social no campo”, destacou a pesquisadora.

A agrônoma também falou da importância de se implantar em Mato Grosso o Programa Nacional para Redução do Uso de Agrotóxicos (Pronara), programa criado por meio da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Pnapo) que objetiva reduzir o uso de agrotóxicos no País.

Conforme Fran Paula, o Pronara foi construído com a participação de vários ministérios e a sociedade, que falam sobre ações e metas que envolvem desde o registro de agrotóxicos a fiscalização, que ainda é bem ineficiente no país. Além disso, o programa prevê também medidas financeiras de incentivo à produção de base orgânica, livre de agrotóxicos e transgênicos, implantação de modos mais rígidos de controle social em relação ao uso desses venenos na agricultura. “O Pronara também tem foco no controle social do uso desses produtos, uma vez que o Brasil é o maior consumidor mundial de agrotóxicos e precisa ter um cuidado maior com a contaminação dos trabalhadores, do meio ambiente e dos alimentos consumidos pela população”, afirmou a agrônoma.

Pressão e lobby dos grandes produtores
O dossiê conta com várias entrevistas e em uma delas os pesquisadores alertam sobre a pressão dos grandes produtores de soja, milho, algodão e outras monoculturas. O engenheiro agrônomo Mohamed Ezz El Din Mostafa Habib conta para a revista IHU on-line (Revista Humanista Unisinos) que não tem críticas às leis em si. “Não tenho reclamação dos órgãos reguladores que liberam e autorizam o uso dos agrotóxicos. O problema não está nesses órgãos e, sim, no outro lado, que pressiona o trabalho deles. As multinacionais que produzem agrotóxicos desrespeitam a sociedade brasileira e o futuro deste país. Elas utilizam o Brasil para ter retorno financeiro e, hoje, trabalham para retirar da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) o poder de opinar sobre os agrotóxicos, que são os maiores inimigos da saúde brasileira”, alertou o especialista.

Conforme Mohamed, a academia não tem força para enfrentar as pressões das multinacionais. “As empresas têm um lobby fortíssimo no Congresso e estão trabalhando contra os interesses nacionais. Minha preocupação é com a interferência e a influência das multinacionais nos órgãos públicos. A CTNBio é pró-multinacionais e 2/3 da instituição trabalham em prol das multinacionais. Isso é assustador porque a sociedade confia nessas organizações que trabalham na contramão dos interesses nacionais”, revela o pesquisador.

O especialista alertou também para o uso de substâncias proibidas em outros países e o risco dos transgênicos: “A transgenia veio para enganar a população. As companhias dizem que os transgênicos consomem menos agrotóxicos, mas acontece o contrário. Os transgênicos consomem mais agrotóxicos do que a cultura convencional anterior. O que a academia e certos meios de comunicação estão fazendo é o início de um processo, ou seja, temos de continuar conscientizando a sociedade”.

Outra pesquisadora, a gerente de normatização e reavaliação da Anvisa (Agência Nacional Vigilância Sanitária), Letícia Rodrigues da Silva, também alerta sobre o tema. Segundo ela o uso de agrotóxicos no mundo começou com a Revolução Verde ocorrida na década de 1970 e, no Brasil, por volta de 1975. “Nesta época foi desenvolvido o Plano Nacional de Defensivos Agrícolas, que incentiva o uso de agrotóxicos e inclusive disponibilizava créditos para produtores rurais que quisessem utilizar esta tecnologia”, assinalou Letícia.

Contudo, ao contrário do que se espera, o governo faz o trajeto inverso ao analisar a periculosidade dos agrotóxicos. Após um produto ser considerado liberado pela Anvisa, ele só sofrerá análise se algum país o considerar impróprio. “A reavaliação de um produto demora e joga para o órgão público a responsabilidade de juntar os dados dos danos que esses produtos estão causando. Esse processo inverte o princípio da precaução, já que as empresas deveriam assegurar que seu produto apresenta todas as condições de segurança antes de lançá-lo no mercado. Aliás, todas as manifestações que houve desde 1989 até hoje foram para afrouxar a legislação de agrotóxicos e não para torná-la mais rígida ou restritiva”, concluiu.

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