do estado de Santa Catarina, num trabalho etnográfico, uma leitura através da recepção de programas televisivos de culinária com mulheres de camadas médias e populares.
A mãe aparece como figura principal na escolha e no
preparo das refeições familiares, e como detentora de um saber sobre as preferências alimentares dos membros da família, que lhe confere posição privilegiada nas relações
com outras mulheres, especialmente as noras. Já a casa da mãe é vista como espaço de referência alimentar para os filhos. Neste sentido, a comida é entendida como possível via de leitura das dinâmicas das relações familiares e de gênero. Além disso, evidenciam-se as intersecções entre alimentação e sociabilidade (Simmel 2006), e a valorização da individualidade como marca da modernidade alimentar.
A cozinha é, portanto, o território do segredo. O segredo é uma forma de distribuição social do conhecimento que diferencia os indivíduos (entre aqueles que sabem e os que desconhecem) e cria uma relação social específica, uma relação de poder, regida por
uma tensão que se dissolve na revelação. Deste modo, oscila-se constantemente entre níveis de revelação e de ocultação. No momento do preparo da comida, principalmente em almoços de domingo ou em comemorações festivas, as relações entre as mulheres na cozinha oscilam entre a revelação de alguns segredos e a manutenção de outros.
(...) o ato alimentar insere e mantém por suas repetições cotidianas o comedor num sistema de significados. É sobre as práticas alimentares, vitalmente essenciais e cotidianas, que se constrói o sentimento de inclusão ou de diferença social. É pela cozinha ou maneiras à mesa que se produzem as aprendizagens sociais mais fundamentais, e que uma sociedade transmite e permite a interiorização de seus valores. É pela alimentação que se tecem e se mantêm os vínculos sociais (Poulin, 2004: 198).
As receitas são passadas em maior quantidade da mãe ou da sogra para as filhas ou noras, e em menor quantidade no sentido inverso. Este movimento de transmissão do saber culinário evidencia uma relação de poder, no sentido de que são as mães que detém o
conhecimento sobre o melhor preparo da comida, e são elas que conhecem o gosto dos membros da família, principalmente dos homens.
A comida estabelece vínculos não apenas entre familiares, mas também entre vizinhos. Aparecida pediu conselhos à vizinha para alimentar a filha adotiva de sete meses, que não estava comendo há dois dias. A vizinha sugeriu que lhe desse sopa,
iogurte... Quando Aparecida quer preparar “algo diferente”, também recorre à vizinha, que lhe empresta seu caderno de receitas. É nele que está anotada a receita de bolo de cenoura que ela tanto gosta. Kátia sempre pede o caderno de receitas da vizinha quando
deseja preparar um bolo de chocolate. É interessante perceber que tanto Kátia quanto Aparecida não anotam as receitas, mas dispõem do caderno das vizinhas sempre que desejam preparar o bolo.
Comida de mãe: notas sobre alimentação e relações familiares
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