segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Comida de mãe: notas sobre alimentação e relações familiares

Em suas observações de campo, a pesquisadora Viviane Kraieski de Assunção, neste trabalho discorre sobre discursos e práticas alimentares das famílias com quem conviveu na
comunidade do Morro da Caixa, no município de Tubarão, no sul
do estado de Santa Catarina, num trabalho etnográfico, uma leitura através da recepção de programas televisivos de culinária com mulheres de camadas médias e populares. 
 A mãe aparece como figura principal na escolha e no
preparo das refeições familiares, e como detentora de um saber sobre as preferências alimentares dos membros da família, que lhe confere posição privilegiada nas relações
com outras mulheres, especialmente as noras. Já a casa da mãe é vista como espaço de referência alimentar para os filhos. Neste sentido, a comida é entendida como possível via de leitura das dinâmicas das relações familiares e de gênero. Além disso, evidenciam-se as intersecções entre alimentação e sociabilidade (Simmel 2006), e a valorização da individualidade como marca da modernidade alimentar. 

A preparação da comida envolve a ocultação de alguns de seus procedimentos.
A cozinha é, portanto, o território do segredo. O segredo é uma forma de distribuição social do conhecimento que diferencia os indivíduos (entre aqueles que sabem e os que desconhecem) e cria uma relação social específica, uma relação de poder, regida por
uma tensão que se dissolve na revelação. Deste modo, oscila-se constantemente entre níveis de revelação e de ocultação. No momento do preparo da comida, principalmente em almoços de domingo ou em comemorações festivas, as relações entre as mulheres na cozinha oscilam entre a revelação de alguns segredos e a manutenção de outros.

(...) o ato alimentar insere e mantém por suas repetições cotidianas o comedor num sistema de significados. É sobre as práticas alimentares, vitalmente essenciais e cotidianas, que se constrói o sentimento de inclusão ou de diferença social. É pela cozinha ou maneiras à mesa que se produzem as aprendizagens sociais mais fundamentais, e que uma sociedade transmite e permite a interiorização de seus valores. É pela alimentação que se tecem e se mantêm os vínculos sociais (Poulin, 2004: 198). 

As receitas são passadas em maior quantidade da mãe ou da sogra para as filhas ou noras, e em menor quantidade no sentido inverso. Este movimento de transmissão do saber culinário evidencia uma relação de poder, no sentido de que são as mães que detém o

conhecimento sobre o melhor preparo da comida, e são elas que conhecem o gosto dos membros da família, principalmente dos homens.

A comida estabelece vínculos não apenas entre familiares, mas também entre vizinhos. Aparecida pediu conselhos à vizinha para alimentar a filha adotiva de sete meses, que não estava comendo há dois dias. A vizinha sugeriu que lhe desse sopa,
iogurte... Quando Aparecida quer preparar “algo diferente”, também recorre à vizinha, que lhe empresta seu caderno de receitas. É nele que está anotada a receita de bolo de cenoura que ela tanto gosta. Kátia sempre pede o caderno de receitas da vizinha quando
deseja preparar um bolo de chocolate. É interessante perceber que tanto Kátia quanto Aparecida não anotam as receitas, mas dispõem do caderno das vizinhas sempre que desejam preparar o bolo. 

Comida de mãe: notas sobre alimentação e relações familiares

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