Em 2006, no Madrid Fusión, congresso de gastronomia mais influente do
mundo, o catalão Ferran Adrià do restaurante El Bulli, subiu ao palco
para definir sua cozinha.
A cozinha do El Bulli.
A jornalista e blogueira Alexandra Forbes, escreveu matéria a
respeito para a revista Gula, sobre os 23 "mandamentos"
permanecem tão válidos hoje quando àquela época.
O chef rejeitou definir seu trabalho como gastronomia molecular: “O
termo não é nada apetitoso, e faz referência apenas à ciência, um de
muitos elementos que definem meu estilo”. Para ilustrar seu argumento,
expôs um manifesto de 23 pontos, sintetizando as características da
cozinha do El Bulli, muitos dos quais se aplicam também à cozinha de
seus colegas avant-gardistas.
O objetivo, disse ele, é o mesmo de seus dois livros enciclopédicos (em
que pratos são catalogados por data de criação): documentar isso tudo
que está acontecendo na cozinha dele e na gastronomia em geral, e
fomentar discussão. “Espero que sirva para mostrar onde estamos hoje, e
quem somos, e também para ajudar a encontrar um nome para isso tudo”.
Leia a seguir o manifesto na íntegra, comentado pelo próprio autor:
1- A cozinha é uma linguagem através da qual se pode expressar harmonia,
criatividade, felicidade, beleza, poesia, complexidade, magia, humor,
provocação.
Creio que a cozinha de hoje não se limita a comer bem. É uma experiência que vai além disso, envolvendo todos os sentidos.
2- Pode-se assumir que serão utilizados produtos da melhor qualidade e que se conhecerão as técnicas para elaborá-los.
Isso é muito importante para mim. Num restaurante onde se pagam 300 ou
400 euros por pessoa, é óbvio que ingredientes têm que ser da melhor
qualidade, e os cozinheiros têm que saber cozinhar. Assim como se espera
que uma fábrica de carros use apenas peças de qualidade para
produzi-los.
3- Todos os produtos têm o mesmo valor gastronômico, independentemente de seu preço.
Houve uma época em que todo menu de restaurante fino tinha lagosta,
trufas, foie gras, tal tal tal. Adoro isso tudo. Só que eu gosto também
de batatas. E de aspargos. Então eu procuro não me prender ao que se
considera fino, e cozinho um produto porque é bom, não pelo que vale.
4- Utilizam-se preferivelmente produtos vegetais e do mar; predominam
também laticínios, frutos secos e outros produtos que em seu conjunto
configuram uma cozinha leve. Faz-se pouco uso de peças grandes de carne
vermelha e de aves.
Isso aqui é bem pessoal. As carnes, em geral, ocupam apenas uma pequena parte do nosso menu.
5- Mesmo que se modifiquem as características dos produtos (temperatura,
textura, forma, etc), o objetivo é preservar seu sabor original, exceto
quando se faça cocção lenta ou se busque matrizes resultantes de
reações como a de Maillard (douramento da comida).
Na cozinha clássica, acham que uma sopa de aspargos tinha sempre o
máximo sabor do aspargo? Isso não é verdade. Vai caldo de ave, isso,
aquilo. No final, sim, tem gosto de aspargo, mas não como o que
procuramos fazer no El Bulli, que é elevar o sabor de cada coisa ao
nível máximo. Então passamos o aspargo por uma licuadora. E pronto. Não
tem nada de radical, claro, mas no El Bulli buscamos isso sempre. Se
fazemos um sorvete de alcachofra, queremos que se pareça ao máximo com
uma alcachofra.
6- As técnicas de cocção, tanto clássicas como modernas, são um patrimônio que o cozinheiro deve saber aproveitar ao máximo.
Se não conhecêssemos a fundo as técnicas de cozinha, como as dos anos
70, da nouvelle cuisine, não poderíamos chegar ao ponto a que chegamos.
7- Como aconteceu ao longo da história em outros campos do conhecimento
humano, as novas tecnologias dão apoio ao progresso da culinária.
Às vezes as pessoas não se dão conta de que nem sempre precisamos de
equipamentos caros e modernos para fazer cozinha inovadora. Veja, por
exemplo, o caso da furadeira adaptada que bolamos para produzir nossa
“linha” de caramelo de azeite (leia box abaixo). Não passa de uma Black
& Decker. A tecnologia desse prato não está no equipamento usado,
mas na técnica que permite transformar azeite em caramelo, e depois em
fios finíssimos.
8- Amplia-se a família dos fonds, e ao lado dos clássico utilizam-se
caldos mais leves que exercem a mesma função (águas, caldos, consommés,
sucos de verduras clarificados, leites de frutos secos, etc).
Caldos de carne e peixe quase não se utliza, sendo trocado por caldo
muito leves, que respeitam, acima de tudo, o sabor do produto.
9- A informação contida num prato se disfruta através dos sentidos, e também através da reflexão.
Quando comecei na cozinha nos anos 80, sentia que não falávamos dos
sentidos. “Ah, que bem-feito, que gostoso, que tal”, e ficava nisso.
Levar em conta os sentidos é uma característica da cozinha atual,
contemporânea.
10- Os estímulos dos sentidos não são apenas gustativos: pode-se brincar
igualmente com o tato (contrastes de temperaturas e texturas), o
olfato, a vista (cores, formas, ilusionismos, etc), de modo que os
sentidos tornam-se um de nossos pontos de referência na hora de criar.
Nós no El Bulli podemos criar um prato a partir de um cheiro, por exemplo. Vale tudo.
11- A busca técnico-conceptual é o vértice da pirâmide criativa.
Está claro. A revolução que se passou na cozinha ocidental nos últimos
dez anos foi causada pelos novos conceitos e técnicas introduzidos pelos
cozinheiros. Mas temos que documentar isso tudo para a posteridade. Sou
contra a criatividade kleenex em que a cada ano se cria uma técnica
nova para depois jogá-la fora.
12- Cria-se em equipe.
Acho que é impossível que uma pessoa possa criar sozinha e isso é normal.
13- Borram-se as fronteiras entre doce e salgado. Importância do mundo do sorvete salgado e da comida fria em geral.
Eu em 1994 criei um sorvete salgado, de parmesão. Hoje em dia a
predominância de pratos gelados e salgados é uma das características de
nossa cozinha.
14- A estrutura clássica dos pratos rompe-se: nas entradas e
sobremesas há uma revolução que tem muito a ver com simbiose, ao passo
que nos pratos principais rompe-se a hiearquia “produto, acompanhamento,
molho”.
Quando comecei, todo prato continha uma carne ou peixe, sua guarnição e o
molho. Não é mais assim. No mundo das entradas, surgem brincadeiras, em
menus como os de Thomas (Keller, Napa Valley e Nova York) ou Tetsuya
(Wakuda, Sydney), e elas se tornam mais difíceis de classificar.
15- Fortalece-se uma nova maneira de servir a comida.
Sem dúvida nenhuma hoje os garçons participam ativamente do processo de
servir e explicar cada prato. Hoje em dia não se come como antes.
16- O autônomo como estilo é um sentimento de vinculação com o entorno.
Usa-se muito palavras como tradição, não sei mais o quê, não sei quanto.
Para mim o importante é o sentimento. Eu crio como catalão, depois como
espanhol, depois como um chef latino. Mas há sentimento nisso! Sem
sentimento não se pode manipular tradições. Thomas, Charlie (Trotter,
Chicago), Wylie (Dufresne, Nova York), cozinham como americanos, como se
sentem sendo americanos! É o sentimento que liga tudo: história,
família, tradições que transformamos.
17- Os produtos e preparações de outros países se submetem ao próprio critério da cozinha.
Há uma segunda revolução, como foi a conquista da América pelos
europeus, que nos deu ingredientes como tomate e milho. É uma verdadeira
loucura, hoje em dia podemos mandar vir produtos do Japão, dos Estados
Unidos, do Peru, e chegam em seguida. A distância não existe. Isso é bom
ou ruim? Tudo é relativo. Outro dia comi umas cerejas chilenas em
Barcelona, e eram das melhores que já provei. E daí que não é estação de
cerejas? O importante é aplicar essas novidades respeitando nosso modo
de cozinhar, nossos parâmetros.
18- Existem dois grandes caminhos para alcançar a harmonia de produtos e
sabores: através da memória (deconstrução, conexão com o autóctono,
adaptação, receitas modernas anteriores) ou através de novas
combinações.
Essas são as duas linhas básicas que seguimos no El Bulli, e creio que seja assim também em todas as partes do mundo.
19 - Pontos de conexão com o mundo e a linguagem da arte.
Estamos nos enlaçando com o mundo artístico cada vez mais, embora a
conexão sempre tenha existido, desde Escoffier, passando por Michel
Bras.
20- Receitas são concebidas para que a harmonia funcione em pequenas porções.
Muitas das coisas que criamos, se fossem pratos grandes não serviriam.
21- A desconstextualização, a ironia a performance e o espetáculo são
completamente lícitos, desde que não sejam superficiais, e que estejam
ligados a uma reflexão gastronômica.
Cozinha para arte ou arte para cozinha? O limite é muito tênue, muito perigoso.
22- O menu degustação é nossa expressão na cozinha de vanguarda. A
estrutura está viva e sujeita a mudanças. Aposta-se em conceitos como
snacks, tapas, morphings, etc.
Isso no El Bulli está claríssimo, pois não temos outro menu senão esse,
de degustação, com diversos snacks e pequenos pratos. Aliás, não temos
um menu propriamente dito, assim como não faria sentido receber um menu
num jantar na casa de amigos.
23- O conhecimento e/ou a colaboração com experts de diferentes
campos (cultura gastronômica, história, desenho industrial, ciência) é
primordial para nossa evolução.
Aqui está faltando citar, também, a indústria alimentícia. Sem dúvida
nenhuma nos últimos anos nós cozinheiros nos aproximamos de gente de
outras áreas, coisa que impulsionou toda essa revolução que estamos
vendo.
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