quarta-feira, 1 de julho de 2015

Os 23 "mandamentos" de Ferran Adrià e da cozinha do El Bulli

Em 2006, no Madrid Fusión, congresso de gastronomia mais influente do mundo, o catalão Ferran Adrià do restaurante El Bulli, subiu ao palco para definir sua cozinha. 
A cozinha do El Bulli. 
A jornalista e blogueira Alexandra Forbes, escreveu matéria a respeito para a revista Gula, sobre  os 23 "mandamentos" permanecem tão válidos hoje quando àquela época.

O chef rejeitou definir seu trabalho como gastronomia molecular: “O termo não é nada apetitoso, e faz referência apenas à ciência, um de muitos elementos que definem meu estilo”. Para ilustrar seu argumento, expôs um manifesto de 23 pontos, sintetizando as características da cozinha do El Bulli, muitos dos quais se aplicam também à cozinha de seus colegas avant-gardistas.
O objetivo, disse ele, é o mesmo de seus dois livros enciclopédicos (em que pratos são catalogados por data de criação): documentar isso tudo que está acontecendo na cozinha dele e na gastronomia em geral, e fomentar discussão. “Espero que sirva para mostrar onde estamos hoje, e quem somos, e também para ajudar a encontrar um nome para isso tudo”. Leia a seguir o manifesto na íntegra, comentado pelo próprio autor:

1- A cozinha é uma linguagem através da qual se pode expressar harmonia, criatividade, felicidade, beleza, poesia, complexidade, magia, humor, provocação.

Creio que a cozinha de hoje não se limita a comer bem. É uma experiência que vai além disso, envolvendo todos os sentidos.

2- Pode-se assumir que serão utilizados produtos da melhor qualidade e que se conhecerão as técnicas para elaborá-los.
Isso é muito importante para mim. Num restaurante onde se pagam 300 ou 400 euros por pessoa, é óbvio que ingredientes têm que ser da melhor qualidade, e os cozinheiros têm que saber cozinhar. Assim como se espera que uma fábrica de carros use apenas peças de qualidade para produzi-los.

3- Todos os produtos têm o mesmo valor gastronômico, independentemente de seu preço.

Houve uma época em que todo menu de restaurante fino tinha lagosta, trufas, foie gras, tal tal tal. Adoro isso tudo. Só que eu gosto também de batatas. E de aspargos. Então eu procuro não me prender ao que se considera fino, e cozinho um produto porque é bom, não pelo que vale.

4- Utilizam-se preferivelmente produtos vegetais e do mar; predominam também laticínios, frutos secos e outros produtos que em seu conjunto configuram uma cozinha leve. Faz-se pouco uso de peças grandes de carne vermelha e de aves.

Isso aqui é bem pessoal. As carnes, em geral, ocupam apenas uma pequena parte do nosso menu.

5- Mesmo que se modifiquem as características dos produtos (temperatura, textura, forma, etc), o objetivo é preservar seu sabor original, exceto quando se faça cocção lenta ou se busque matrizes resultantes de reações como a de Maillard (douramento da comida).

Na cozinha clássica, acham que uma sopa de aspargos tinha sempre o máximo sabor do aspargo? Isso não é verdade. Vai caldo de ave, isso, aquilo. No final, sim, tem gosto de aspargo, mas não como o que procuramos fazer no El Bulli, que é elevar o sabor de cada coisa ao nível máximo. Então passamos o aspargo por uma licuadora. E pronto. Não tem nada de radical, claro, mas no El Bulli buscamos isso sempre. Se fazemos um sorvete de alcachofra, queremos que se pareça ao máximo com uma alcachofra.

6- As técnicas de cocção, tanto clássicas como modernas, são um patrimônio que o cozinheiro deve saber aproveitar ao máximo.

Se não conhecêssemos a fundo as técnicas de cozinha, como as dos anos 70, da nouvelle cuisine, não poderíamos chegar ao ponto a que chegamos.

7- Como aconteceu ao longo da história em outros campos do conhecimento humano, as novas tecnologias dão apoio ao progresso da culinária.

Às vezes as pessoas não se dão conta de que nem sempre precisamos de equipamentos caros e modernos para fazer cozinha inovadora. Veja, por exemplo, o caso da furadeira adaptada que bolamos para produzir nossa “linha” de caramelo de azeite (leia box abaixo). Não passa de uma Black & Decker. A tecnologia desse prato não está no equipamento usado, mas na técnica que permite transformar azeite em caramelo, e depois em fios finíssimos. 

8- Amplia-se a família dos fonds, e ao lado dos clássico utilizam-se caldos mais leves que exercem a mesma função (águas, caldos, consommés, sucos de verduras clarificados, leites de frutos secos, etc).
Caldos de carne e peixe quase não se utliza, sendo trocado por caldo muito leves, que respeitam, acima de tudo, o sabor do produto.

9- A informação contida num prato se disfruta através dos sentidos, e também através da reflexão.

Quando comecei na cozinha nos anos 80, sentia que não falávamos dos sentidos. “Ah, que bem-feito, que gostoso, que tal”, e ficava nisso. Levar em conta os sentidos é uma característica da cozinha atual, contemporânea.

10- Os estímulos dos sentidos não são apenas gustativos: pode-se brincar igualmente com o tato (contrastes de temperaturas e texturas), o olfato, a vista (cores, formas, ilusionismos, etc), de modo que os sentidos tornam-se um de nossos pontos de referência na hora de criar.

Nós no El Bulli podemos criar um prato a partir de um cheiro, por exemplo. Vale tudo.

11- A busca técnico-conceptual é o vértice da pirâmide criativa.
Está claro. A revolução que se passou na cozinha ocidental nos últimos dez anos foi causada pelos novos conceitos e técnicas introduzidos pelos cozinheiros. Mas temos que documentar isso tudo para a posteridade. Sou contra a criatividade kleenex em que a cada ano se cria uma técnica nova para depois jogá-la fora.

12- Cria-se em equipe.
Acho que é impossível que uma pessoa possa criar sozinha e isso é normal.

13- Borram-se as fronteiras entre doce e salgado. Importância do mundo do sorvete salgado e da comida fria em geral.
Eu em 1994 criei um sorvete salgado, de parmesão. Hoje em dia a predominância de pratos gelados e salgados é uma das características de nossa cozinha.

14- A estrutura clássica dos pratos rompe-se: nas entradas e sobremesas há uma revolução que tem muito a ver com simbiose, ao passo que nos pratos principais rompe-se a hiearquia “produto, acompanhamento, molho”.
Quando comecei, todo prato continha uma carne ou peixe, sua guarnição e o molho. Não é mais assim. No mundo das entradas, surgem brincadeiras, em menus como os de Thomas (Keller, Napa Valley e Nova York) ou Tetsuya (Wakuda, Sydney), e elas se tornam mais difíceis de classificar.

15- Fortalece-se uma nova maneira de servir a comida.
Sem dúvida nenhuma hoje os garçons participam ativamente do processo de servir e explicar cada prato. Hoje em dia não se come como antes.

16- O autônomo como estilo é um sentimento de vinculação com o entorno.

Usa-se muito palavras como tradição, não sei mais o quê, não sei quanto. Para mim o importante é o sentimento. Eu crio como catalão, depois como espanhol, depois como um chef latino. Mas há sentimento nisso! Sem sentimento não se pode manipular tradições. Thomas, Charlie (Trotter, Chicago), Wylie (Dufresne, Nova York), cozinham como americanos, como se sentem sendo americanos! É o sentimento que liga tudo: história, família, tradições que transformamos.

17- Os produtos e preparações de outros países se submetem ao próprio critério da cozinha.
Há uma segunda revolução, como foi a conquista da América pelos europeus, que nos deu ingredientes como tomate e milho. É uma verdadeira loucura, hoje em dia podemos mandar vir produtos do Japão, dos Estados Unidos, do Peru, e chegam em seguida. A distância não existe. Isso é bom ou ruim? Tudo é relativo. Outro dia comi umas cerejas chilenas em Barcelona, e eram das melhores que já provei. E daí que não é estação de cerejas? O importante é aplicar essas novidades respeitando nosso modo de cozinhar, nossos parâmetros.

18- Existem dois grandes caminhos para alcançar a harmonia de produtos e sabores: através da memória (deconstrução, conexão com o autóctono, adaptação, receitas modernas anteriores) ou através de novas combinações.

Essas são as duas linhas básicas que seguimos no El Bulli, e creio que seja assim também em todas as partes do mundo.

19 - Pontos de conexão com o mundo e a linguagem da arte.
Estamos nos enlaçando com o mundo artístico cada vez mais, embora a conexão sempre tenha existido, desde Escoffier, passando por Michel Bras.

20- Receitas são concebidas para que a harmonia funcione em pequenas porções.

Muitas das coisas que criamos, se fossem pratos grandes não serviriam.

21- A desconstextualização, a ironia a performance e o espetáculo são completamente lícitos, desde que não sejam superficiais, e que estejam ligados a uma reflexão gastronômica.

Cozinha para arte ou arte para cozinha? O limite é muito tênue, muito perigoso.

22- O menu degustação é nossa expressão na cozinha de vanguarda. A estrutura está viva e sujeita a mudanças. Aposta-se em conceitos como snacks, tapas, morphings, etc.
Isso no El Bulli está claríssimo, pois não temos outro menu senão esse, de degustação, com diversos snacks e pequenos pratos. Aliás, não temos um menu propriamente dito, assim como não faria sentido receber um menu num jantar na casa de amigos.

23- O conhecimento e/ou a colaboração com experts de diferentes campos (cultura gastronômica, história, desenho industrial, ciência) é primordial para nossa evolução.
Aqui está faltando citar, também, a indústria alimentícia. Sem dúvida nenhuma nos últimos anos nós cozinheiros nos aproximamos de gente de outras áreas, coisa que impulsionou toda essa revolução que estamos vendo.

 

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