sexta-feira, 5 de junho de 2015

"A baiana Hildegardes Viana"

 Negras, “mulatas”, vendedoras de iguarias culinárias como cuscuz, mingau, acaçá e abará, “baianas” mercadoras de acarajé, amas-de-leite, lavadeiras, cozinheiras, costureiras, etc. Todas, mulheres sofridas, personagens das crônicas de costume de Hildegardes Vianna. 
Conhecida como folclorista pela sociedade baiana, por escrever sobre os aspectos culturais da Bahia,
Hildegardes Cantolino Vianna era membro da Academia de Letras da Bahia, do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e colunista do jornal A Tarde, com publicações de crônicas e artigos, no transcurso de 44 anos ininterruptos. 
O sucesso com a coluna semanal em que apresentava as crônicas foi tamanho, que impulsionou a cronista a selecionar vários textos e publicar dois livros, A Bahia já foi assim (1973) e Antigamente era assim (1979).
Publicar crônicas de costume durante um periódico de 44 anos (1955 – 1999) acaba por gerar uma produção vasta e multifacetada, logo, é necessário fazer escolhas. Sempre é. 
fiz. 
Pelo desejo, pela falta e até pelo acaso escolhi as crônicas que representam as mulheres negras para analisar no meu projeto de pesquisa para o curso de mestrado. 
A mulher negra, por olhar ao espelho e enxergar meus ancestrais maternos, minha mãe impossibilitada de estudar por ter que cuidar dos irmãos, enquanto minha avó, neta de escravos, seguia a sina que Hildegardes Vianna apresenta em
suas crônicas, trabalhar na cozinha do branco. 
O certo é que consegui interromper o ciclo. E devo a elas, minhas senhoras negras, estar aqui me debruçando sobre essas linhas e tentando entender o que leva uma mulher formadora de opinião recordar com saudosismos tempos de tanto sofrimento e poucas oportunidades aos não-brancos.

Na cronica "A baiana Hildegardes Viana". Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 29 de julho de 1956)podemos conhecer um pouco da ilustre cronista por ela mesma.


"A baiana Hildegardes Viana

Eu me chamo Hildegardes Cantolino Viana. Uso apenas Hildegardes Viana, por ser mais simples de guardar. Nasci na ladeira do Genipapeiro, na cidade de Salvador, num mês de março, e acho que isto me dá sorte. Fui batizada por Hildegardes depois de minha família relutar muito entre Cândida e Juraci. 
A autora dedica várias crônicas à temática da culinária. 
E quando confere uma certa visibilidade às mulheres negras, a maioria delas está representada como mão-de-obra
trabalhadora, na feitura de quitutes e sua comercialização nas ruas da cidade de Salvador..."

 A crônica "Da arte de fazer cuscuz" (23/09/1969) ilustra bem essa afirmativa: 
Antigamente, fazer cuscuz era uma arte. O seu preparo, em muitas ocasiões, principiava de véspera. O milho ou o arroz tinha de ser posto de molho para amolecer. 

No dia seguinte, ou melhor, madrugada seguinte, alguém acordava antes do nascer do sol para ralar na pedra ou socar no pilão o milho. 
Poucas mulheres utilizavam o pó de milho comprado já pronto em uma tulha qualquer... O gosto não era o mesmo, apesar de ficar algumas horas dentro d’água para tomar corpo e cozinhar melhor. E dava trabalho, pois tinha que ser escorrido num pano e ser pendurado a ensombrar, até o ponto de poder ser secado para não formar grumos.
O arroz podia ir para pedra ou para o pilão, mas havia quem usasse uma garrafa ou uma bilha (no caso apenas um rolo de madeira de abrir massa)  para esmagar o arroz inchado espalhado sobre um pano grosso. O inhame  dava melhor trabalho, mas tinha de ser aferventado, esfriado para depois ser ralado.
Ralar coco nunca foi tarefa fácil. Quebrar, descascar, lavar e ralar. Quando era cuscuz, sem compromisso dentro de casa, sem preocupações de agravar ou não a quem comesse, o coco podia ser, depois de lavado, guardado dentro de uma vasilha com água, para posterior ralação. Também podia ser ralado de noite, salpicando-se um tantinho de sal moído por cima para não azedar. Mas cuscuz para vender exigia tudo fresco. Tudo do mesmo dia.
Tirar leite de coco tinha ou ainda tem sua técnica. O leite sem água conseguia-se, como hoje, pondo-se as porções do coco ralado dentro de um pano e apertando-se muito bem, até escorrer o líquido alvo e saboroso.
Conforme o mister a que se destinasse, levava, e ainda leva, água quente, não muito quente, mais para morna, para iguarias que dependessem da gordura do coco para amaciar a massa. 
Água fria para determinados tipos de mingau ou canjica e até de cuscuz de inhame-fubá, por exemplo.
O leite tirado com a primeira água era reservado para ser fervido com sal e açúcar. O Bagaço que ficava era, então, misturado na massa. Bem espremido, se fosse para cuscuz de tapioca e um pouco úmido se para milho, mandioca ou inhame. Quanto trabalho dava esbrugar o bagaço até ficar soltinho [...]
Pronto o bagaço, pronto o fubá ou o que fosse, era iniciada a fase de mistura em que os dedos tinham função precípua. Além de mexer tudo muito bem, uniformizando a distribuição do sal e do açúcar, os dedos tinham o dever de sentir o grau de umidade requerido para que saísse um cuscuz correto.
Era a hora do cuscuzeiro de barro com um guardanapo ou toalhinha fina à guisa de forro. As profissionais tinham pano adequado par o cuscuzeiro em forma de quadrado, nem muito grosso nem muito fino. A massa ia sendo colocada de um jeito todo especial, as palmas das mãos se movendo uma
contra a outra, esfarinhando tudo para não formar batoques. Acabada a operação e coberta a superfície da massa com as pontas dos panos ou guardanapo, o cuscuzeiro era adaptado à tampa de uma panela de barro cheia de água até certa altura. A calefação era feita para evitar que escapasse algum vapor d’água quando fervesse, utilizando para tal fim uma

pouco de farinha de guerra molhada. (VIANNA, A Tarde, 23/09/1969,grifos nossos).

Um comentário:

  1. Quanto trabalho para comidas aparentemente tão singelas! Certamente, quem comia nem pensava nem sabia... 🙁

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