Na
literatura, no cinema, nas ciências, na filosofia e religião existem
evidências da relação entre memória e comida. O sociólogo francês Pierre
Bourdieu afirma que é “provavelmente nos gostos alimentares que se
podem encontrar a marca mais forte e indelével do aprendizado infantil.
São lições que resistem por mais tempo à distância ou ao colapso do
“mundo nativo” (conhecido pelo mundo dos gostos primordiais e alimentos
básicos) e que conservam a nostalgia.”
O
escritor francês Marcel Proust concluiu que o olfato e o paladar têm o
poder de convocar o passado. Ele atribuiu a uma Madeleine (bolinho de
limão em forma de concha), e uma xícara de chá o fato de ter recordado
de um período esquecido de sua infância. Ao se conectar com suas
memórias, Proust rompe com o incômodo vazio de sua escrita e produz a
obra “Em Busca do Tempo Perdido”, considerada um dos principais
clássicos da literatura mundial. Sua vida recomeça com um gole de chá e
um pedaço de bolo: “Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta
com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que
se passava de extraordinário em mim”.
A
neurociência comprovou que Proust estava certo. A psicóloga Rachel
Herz, da Universidade de Brown (EUA), mostrou que os sentidos do olfato e
do paladar são exclusivamente sentimentais. Isto porque são os únicos
que se conectam diretamente com o hipocampo - o centro da memória de
longo prazo do cérebro. A visão, o tato e a audição são processados
primeiro pelo tálamo - a fonte da linguagem e porta de entrada para a
consciência. É por isso que esses são bem menos eficientes em trazer à
tona o passado.
A
historiadora francesa Luci Giard relata que nunca se importou em
aprender a cozinhar, mesmo crescendo numa família onde todos cozinhavam.
Ela se deu contadessa
necessidade quando foi morar sozinha. Ao procurar orientação em livros
de culinária, a autora percebeu que: “bastava uma receita ou palavra
indicativa para suscitar uma estranha recordação capaz de reativar, por
fragmentos, antigos sabores e primitivas experiências que, sem querer,
havia herdado e estavam armazenadas em mim”. Sua memória despertou para
um conhecimento culinário que aprendeu em família sem se dar conta.
O
filme infantil Ratatouille traz o personagem Anton Ego, temido crítico
gastronômico francês, que se transporta para sua infância após provar um
tradicional cozido de legumes. Suas lembranças mostram a mãe
preparando-lhe o prato. A partir dessa experiência, Ego mudou sua
percepção sobre gastronomia, passando a considerar que “qualquer um pode
cozinhar”, principal mensagem do longa-metragem. No Cristianismo, a
Última Ceia teve por finalidade se tornar inesquecível para seus
seguidores. O pão e o vinho simbolizariam o corpo de Cristo: “comei e
bebei em memória de mim”. Ao longo dos séculos, os cristãos comem o pão e
bebem vinho como ato memorial.
O
romance brasileiro “Cozinheiro do Rei”, de autoria de Zé Rodix, narra a
trajetória de um menino índio chamado Pedro Karaí, que modificou sua
história após bater a cabeça numa rocha. Ele ficou desacordado, dado
como morto, e só renasceu com um mingau de tapioca com farinha de peixe
preparado por sua mãe. Mais tarde, na juventude, ele declara: “eu já
sabia que ia se formando em mim um repertório de sabores que me
auxiliava a reconhecer os melhores e os piores, mas todos eles se
equilibravam em volta do meu primeiro alimento verdadeiro, o mingau que
minha mãe me havia feito provar e que por isso se tornara inesquecível”.
Auridenes
Matos, integrante da Coordenação Nacional do Fórum Brasileiro de
Segurança e Soberania Alimentar (FBSSAN), destaca que para os povos
indígenas e comunidades tradicionais, “a terra é vida e sem a terra não
há vida”. No diálogo com caciques e lideranças comunitárias, ela percebe
o trato, a preocupação no cuidado com as roças e com o alimento. “Da
terra eles tiram o sustento, a água, a comida, a inspiração para o
artesanato e tantas outras inspirações. Eles têm uma relação muito
intensa e extremamente respeitosa com a terra, com a produção
sustentável dos alimentos”, explica.
No
caso dos povos indígenas, Auridenes comenta que eles gostam muito de
comer peixes, tal como o personagem Karaí. “Eles fazem festas para
celebrar a fartura dos alimentos que colhem e pescam. Demonstram muita
alegria em ter tanta fartura de alimentos em seus territórios. Esses
povos originários são os verdadeiros donos desse imenso belíssimo país.
Precisamos ouvi-los mais, pois temos muito a aprender com eles”,
finaliza a integrante do FBSSAN, que mora no Maranhão, região Nordeste
do Brasil, onde existem 9 povos indígenas: Canela Ramkokamekrá, Canela
Apaniêkrá, Gavião, Ka'apor, Guajajara, Kreniê, Krikati (mais dois).
Os Quilombolas e Ribeirinhos da Região do Médio Mearim e da Região do
Baixo Parnaíba formam as comunidades tradicionais do Estado.
Essa
forte ligação com a terra indica como a comida, o afeto e a identidade
estão emaranhados num complexo tecido social. São laços indissociáveis,
que fortalecem o povo e o lugar, e podem conduzir a uma genuína
experiência reveladora, tal qual aconteceu com Proust, Luci, Ego e
Karaí. As organizações e redes sociais integradas ao FBSSAN sinalizam a
importância de repensar a relação que temos com os alimentos,
fortalecendo-os como elemento da memória, da identidade e do afeto.
Reconhecer a comida como patrimônio constitui-se, portanto em aspecto
chave que fortalece e revitaliza a defesa dos biomas e territórios, com
suas especificidades culturais e com suas lutas pelo direito à
alimentação adequada e saudável.
Hábitos alimentares: veículos de profunda emoção
O
antropólogo norte-americano Sidney Mintz explica que os hábitos
alimentares são veículos de profunda emoção. Para o autor, a comida e o
comer são centrais no aprendizado social por serem atividades vitais e
essenciais, embora rotineiras. As atitudes em relação à comida são
aprendidas cedo e bem. Na visão de Mintz, esse comportamento alimentar é
nutrido por adultos afetivamente “poderosos”, que conferem um poder
sentimental duradouro. Assim, o autor explica que o lugar onde crescemos
e as pessoas com quem convivemos vão aos poucos construindo um material
cultural. Esse material dá forma ao nosso comportamento alimentar que
“se liga diretamente ao sentido de nós mesmos e à nossa identidade
social”. A maneira como nos alimentamos revela constantemente a cultura
em que estamos inseridos.
Nos
relatos de Proust, Luci, Ego e Karaí observamos que as memórias estão
ligadas ao universo familiar, principalmente à mãe. No entanto, a
alimentação infantil tem recebido cada vez mais cedo a introdução de
produtos alimentícios ultraprocessados (contento alto teor de aditivos
químicos, corantes etc), e se esforça para parecer “artesanal” ou
“caseiro”. Ao considerar que a memória é uma dimensão importante na
relação com a alimentação, quais sentidos e identidades que estas marcas
podem construir na infância?
A cultura alimentar vem sofrendo grandes transformações a partir do fim do século XX. Em qualquer país do mundo os alimentos essenciais provém de um sistema alimentar com escala planetária. O processo de industrialização acompanhado da ruptura fundamental das relações humanas com o seu meio e lugar de memória, possibilitou “mascarar” cada um dos atributos sensoriais, cheiro, textura, forma e sabor. A campanha Comida é Patrimônio, do FBSSAN, se propõe a discutir essas relações vitais para reconhecer e fortalecer os modos de produzir, comer e viver. Não é preciso ir muito longe para admitir o quanto de memória e afeto têm numa refeição. O leitor pode fazer um teste puxando o fio de suas lembranças. Seguramente, chegará numa receita especial que marcou sua história.
Marketing das emoções
Hoje,
a publicidade evoca afeto, carinho e cuidado, elementos que fazem parte
da cultura alimentar. Muitos comportamentos alimentares baseiam-se nas
estratégias de marketing e não em experiência racional ou práticas
tradicionais. Seguindo o pensamento de Mintz, os adultos afetivamente
poderosos são substituídos pela engenharia de alimentos, laboratórios e
processos industriais. As memórias gustativas não deveriam ser acúmulo
de marcas, antes deveriam permanecer como um delicioso baú de sabores
singulares.
Que
teria acontecido com o índio Karaí sem a existência do Sertão da Bahia,
onde nasceu, sem os alimentos locais desse território? Sua salvação da
miséria, da violência, do preconceito e da escravidão foi a forte
ligação que estabeleceu com seu alimento local. Essa identidade o
acompanhou por toda a sua existência, dando-lhe autonomia, dignidade,
cidadania e, principalmente, liberdade.
O
Guia Alimentar para a População Brasileira, publicado em 2014pelo
Ministério da Saúde (MS), recomenda que a base da alimentação sejam os
alimentos in natura ou minimamente processados (que foram
submetidos a processos de limpeza, fracionamento, moagem, secagem,
fermentação, pausterização, regrigeração e congelamento, sem adição de
sal, açúcar, óleos e gorduras). O uso de alimentos processados
(derivados diretamente de alimentos e reconhecidos como versões de
alimentos originais, por exemplo enlatados e polpas de tomate) deve ser
limitado a pequenas quantidades. Podem servir como ingredientes de
preparações culinárias ou como parte de refeições.
Já
os alimentos ultraprocessados devem ser evitados. Estes são fórmulas
industriais feitas principalmente de substâncias extraídas de alimentos,
como óleos, gorduras, açúcar, amido e proteína ou sintetizadas em
laboratório com base em matérias orgânicas como petróleo e carvão). De
acordo com o Guia, os ultraprocessados tendem a afetar negativamente a
cultura, a vida social e o ambiente. Nos dez passos para a alimentação
saudável está o incentivo a desenvolver, exercitar e partilhar
habilidades culinárias. “O enfraquecimento da transmissão de habilidades
culinárias entre as gerações favorece o consumo de ultraporcessados”,
de acordo com o Guia.
Neste
ponto, a memória de Proust, Luci, Ego e Karaí estão bem guarnecidas,
pois as lembranças que mudaram suas vidas não estão ligadas a rótulos da
indústria, mas às pessoas e à cozinha. Outra iniciativa do Ministério
de Saúde é o livro sobre alimentos regionais brasileiros (http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/publicacoes/livro_alimentos_regionais_brasileiros.pdf)
que discute a possibilidade de resgatar e incentivar o consumo de
alimentos regionais e sua relação simbólico-cultural. O objetivo é
valorizar os itens alimentares com características regionais,
apresentando-os como instrumentos de fomento e proteção do patrimônio
material e imaterial.
O
Guia orienta que é preciso refletir sobre a importância que a
alimentação tem no cotidiano e que se conceda maior valor em adquirir,
preparar e consumir alimentos. Também deve-se exigir ações regulatórias
do Estado que tornem o ambiente mais propício para a adoção dessas
recomendações.
A
publicidade é um desses grandes desafios, pois mais de dois terços dos
comerciais sobre alimentos veiculados na televisão se referem a fast
food, salgadinhos de pacote, biscoitos, bolos, cereais matinais, balas e
outras guloseimas, refrigerantes, sucos adoçados e refrescos em pó, ou
seja, somente ultraprocessados. As indústrias e agências publicitárias
parecem já ter entendido o recado do Guia Alimentar e recorreram à
memória e ao afeto.
Um
exemplo é a Coca-cola com a campanha dos sucos Del Valle que tem como
slogan “o segredo é o carinho”, que é dirigido às mães e seus filhos no
momento da refeição. Outra propaganda dessa marca, segue a orientação do
Guia sobre a comensalidade, que sugere comer em companhia. Com o slogan
“vamos comer junto?”, a publicidade se baseia em histórias de famílias
reais e fictícias onde sentar à mesa para comer, tendo a coca-cola no
centro, é um momento importante e que deve ser preservado na vida
familiar. Uma dessas famílias é a do chef Claude Troisgros.
A
maioria dos anúncios é dirigida às crianças e adolescentes. O projeto
de Lei 5921 para regulação da publicidade infantil se arrasta por quase
13 anos, sem aprovação. Diferente do projeto do fim da rotulagem de
Transgêncios (PLC 34/2015 de 30 de Abril de 2015),
aprovado pela câmara dos deputados e aguarda aprovação final no Senado.
Caso seja aprovada, esta lei viola o direito de informação do
consumidor de saber o que está comendo. O FBSSAN é uma das 118
organizações que assinou a carta enviada ao Senado Federal e às
autoridades como o Ministério da Justiça, Ministério da Agricultura,
Ministério Público Federal e Secretaria Nacional do Consumidor
(Senacon), pedindo que o PL não seja aprovado. No dia 22 de maio, o
Senado lançou em sua página (http://www12.senado.gov.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=120996) uma consulta à população sobre o conteúdo da PL, na consulta é possível opinar a favor ou contra a PL.
Diante
desse cenário em que a comida como mercadoria também é embalada com
afeto, é importante reivindicar a cultura alimentar com a terra, com a
comunidade, com a cultura e tradição e as relações com a memória. Ao
defender a comida como um patrimônio, o FBSSAN luta para que este bem
comum seja apreendido como símbolo de afeto, capaz de transformar,
mobilizar e engajar e fazer florescer experiências tão ricas e
frutíferas quanto as de Proust, Luci, Ego e Karaí.
A campanha Comida é Patrimônio é realizada em parceria com a Malagueta Comunicação.
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Malagueta Comunicação Texto: Juliana Dias e Mónica Chiffoleau Revisão de conteúdo: Juliana Casemiro e Vanessa Shotz Revisão geral: Mariana Moraes Fotos: Carolina Amorim
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