POR ALEX ATALA
Sempre fui um grande fã da tecnologia e da compreensão da ciência em
favor de uma receita. Acho que esse é um caminho evolutivo. E não só
para misturas ousadas ou pratos
espetaculares, mas principalmente porque
esse advento da técnica e tecnologia nos permite ir além de certas
limitações encontradas nos métodos tradicionais. Neste mês, falo sobre
um clássico da cozinha caipira: uma receita recorrente que é o porco na
lata, ou confit, como se diria na França.
Esse prato foi criado pela necessidade de conservação, uma vez que
sem energia elétrica era grande a dificuldade de conservar alguns
ingredientes. Nesse caso, uma solução foi manter a carne de porco em sua
banha. Hoje existe quase um folclore na cozinha brasileira ao se
comemorar um confit francês. E daí fica minha primeira pergunta: Quem é o
primo pobre de quem?
Por aqui, após ser limpa, a carne de porco era frita até ficar bem
passada – muitas vezes, até demais. Mas é compreensível e teve um
motivo. O de livrar a carne de qualquer zoonose. É fato que hoje o porco
não é mais um transmissor de doenças e não precisa mais ser cozido
profundamente. Claro, desde que tenha boa procedência. Já que faz parte
da nossa tradição brasileira, por que não tentar revê-la, agora com mais
exatidão.
Quase todas as carnes se prestam muito bem a essa técnica, mas o
ponto fundamental de um confit é quando ele está pronto. Imersas na
gordura animal, não sofrem a ação de bactérias aeróbicas (por causa da
ausência de ar), nem das anaeróbicas (que apesar de serem as mais
patogênicas, também são as que mais sofrem com a alta temperatura).
Infelizmente, não é mais aceitável pegar um porco de terreiro para fazer
uma receita. Apesar de o porquinho Piau (a raça caipira brasileira) –
agora falo de forma nostálgica – ser o campeão.
Os porcos vendidos hoje no mercado são de raças com origem europeia:
brancos, grandes, que não guardam as riquezas do terreiro, porém são
muito mais seguros de ser trabalhados. O primeiro ponto é curar a carne
do porco, tirar o excesso de água. Quando não se faz esse processo
corretamente, pode acontecer de muitos sucos decantarem no fundo da
panela e essa gelatina pode ser um condutor de bactérias e estragar algo
que parecia estar bom.
O processo é bastante simples: sal, açúcar e pimenta-do-reino em
proporções iguais. Deixar a peça envolta nessa mistura (que não precisa
ser abundante) por 24 horas, o tempo ideal para que se preserve o sabor
da carne e, ao mesmo tempo, se extraia o excesso de líquido. O passo
seguinte é temperar e cozinhar a 65 ºC até que fique macia e comece a se
soltar do osso. Nesse momento, não vou ser rígido com o tempo de
cozimento, mesmo porque ele pode apresentar variação conforme o tamanho e
a idade do animal. Um leitãozinho vai demorar muito menos tempo que um
porco maduro e inteiro. O importante é não se prender ao relógio, e sim à
sensibilidade do cozinheiro, reforçada com o auxílio do termômetro que
ajudará a cocção na temperatura correta. Isso vai render uma carne mais
macia, mais gelatinosa e com ausência de gordura, que será facilmente
dissolvida. E a banha vai conferir um sabor final que acho fenomenal.
A receita é muito simples, e peço para ser servida com um bom limão,
de preferência o rosa, que tem mais suco e é menos ácido que o nosso
tahiti ou galego. Também vale acompanhar com um pouquinho de farofa.
Quando pronto, deixe esfriar e, uma vez frio, mude os pedaços de
recipiente. O resto é brincar de ser feliz e entender que o criativo
muitas vezes não é ter olhos para o futuro, e sim olhar para trás,
sabendo reciclar o passado e colocá-lo de forma inovadora.
Porco na lata
4 porções
1 kg de paleta de porco desossada
1 kg de costelinha de porco (somente a parte carnuda); 1 kg de banha de porco
30 g de sal; 10 g de tomilho
10 g de alecrim; 10 g de alho
250 g de linguiça fresca; 250 ml de caldo de carne; 120 ml de vinho branco
10 unidades de alho confitado
1 ramo de alecrim
Alho confitado
10 dentes de alho; banha de porco
Caldo de carne
15 kg de ossos bovinos; 75 g de semente de coentro; 10 g de alecrim; 5 g de tomilho
2 g de pimenta-do-reino; 2 g de pimenta branca; 20 litros de água; 500 ml de vinho Madeira doce; 25 ml de óleo de canola
10 tomates com pele e sementes, picados
5 cenouras médias; 5 cebolas médias
2 garrafas de vinho tinto seco
2 talos de alho-poró; 2 talos de salsão
2 folhas de louro; 1 cabeça de alho, assada
1 Corte a paleta em cubos com cerca de 5 cm cada um e separe os ossos
da costelinha. 2 Tempere-os com tomilho, alecrim, sal e alho picado e
deixe marinando por 24 horas. 3 Adicione a paleta e as costelinhas na
banha de porco derretida e cozinhe a 80 °C por 7h30 ou em fogo baixo,
sem deixar ferver, até que fiquem macias; reserve. 4 Em uma frigideira
com banha de porco, doure a paleta, as costelinhas e a linguiça fresca;
finalize com os dentes de alho confitados. 5 Na mesma frigideira, retire
as carnes, a gordura e adicione o vinho branco; reduza; junte o caldo
de carne; acerte o sal e a pimenta. 6 Finalize com um ramo de alecrim e
sirva.
Alho confitado
Em uma panela pequena, adicione os dentes de alho descascados à banha de
porco derretida e cozinhe em fogo baixo, sem deixar ferver, até que
fiquem macios; reserve.
Caldo de carne (1 litro)
1 Coloque os ossos em uma assadeira e torre-os no forno por 40
minutos a 200 ºC. 2 Pique todos os legumes em formato de meia-lua;
coloque o óleo numa panela alta em fogo alto; refogue primeiramente a
cebola até começar a dourar; a partir daí, acrescente o restante dos
legumes, as ervas, as pimentas, metade das sementes de coentro, o alho;
refogue bem; junte os ossos, metade do vinho tinto e do vinho Madeira. 3
Coloque a água até que cubra os ossos. 4 Cozinhe em fogo baixo por
aproximadamente 40 horas (complete com água após 20 horas); coe o caldo
no chinois e, em outra panela, leve-o novamente ao fogo. 5 Acrescente o
restante do vinho tinto e do vinho Madeira e o restante das sementes de
coentro (levemente torradas, a fim de liberar mais sabor); cozinhe por
mais 8 horas em fogo baixo; coe novamente e resfrie; para finalizar,
depois de resfriado retire a gordura da superfície.
(*) Alex Atala é chef e proprietário dos restaurantes D.O.M. e Dalva e Dito, em São Paulo
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