sábado, 23 de maio de 2015

Entre poesia e escrita, entre Avignon e Bahia, entre cheiros e cores, Bate&Leva com Eveline Abreu.

Nosso Bate&Leva de hoje é com Eveline de Abreu. 
Com um pé na França, outro na Bahia, nossa entrevistada fala da escrita como vício e ofício e das escapadas até a sua cozinha, quando bate saudade de casa. 


Morar a 30 minutinhos da bela Avignon, na Provence (sul da França), certamente explica o gosto apurado e seu cuidado com a alimentação. 
E graças às facilidades das novas tecnologias, ela dá aulas de produção textual a alunos espalhados nos quatro cantos, para o que desenvolveu uma metodologia de ensino sem trauma ou sofrimento. 
Redatora de profissão, Eveline é uma expert na avaliação de conteúdo, tanto para as necessidades de comunicação do mundo virtual como as do ‘mundo em carne-e-osso’. 


Em alto e bom som, ela declara não passar sem arroz, mas “tem que ser do bom, feito com folhinha de louro, salpicado de alho fumé e regado com fios de azeite, um luxo, se enfeitado com farinha de grãos de ibisco, semente de linhaça e gergelim torrado”. 
E cita boas referências culinárias da Bahia e outros lugares. “Tenho memória afetivo-gustativa de gente boa no tacho e na colher de pau, como a amiga e vizinha Celeste Oliveira, em Salvador; Caroline Vanruytem, do Riad Dar Azaouia, em Assilah, Marrocos; e você. 
Nunca vou me esquecer de um peixe na folha de bananeira, acompanhado de arroz fumegante e branquinho com um purê de banana-da-terra que você fez há mil anos, bem antes do Maria Mata Mouro...”

Bate&Leva El COCINERO LOKO- Provocação: vatapá ou caviar? 
EVELINE DE ABREU- Vatapá, vatapá e vatapá. Disparado!

ECL- Se pudesse sentar à mesa com Eveline de Abreu, o que lhe perguntaria? 
EVE- O que ela quer comer (risos). 

ECL- Cite algumas peculiaridades do seu trabalho: 
EVE- Escrevo, antes de viver de escrever. E desenvolvi uma metodologia voltada para o aprendizado da escrita sem trauma, nem sofrimento. Tem funcionado. Reeditei em versão virtual (por Skype) o curso 'Sobre-Escrita, redação', que atende a todo tipo de interesse e necessidade, porque escrever é um ato único e sólido, que se presta a qualquer circunstância. Como fui aluna da Aliança Francesa e moro na França há muitos carnavais, também passei a dar aulas de francês e a fazer passeios com brasileiros pela Provence.

ECL- Que te faz brilhar os olhos com seu trabalho? 
EVE- Vou dar apenas um exemplo: imagine você que tenho uma aluna na Irlanda, uma paraense chamada Vera Duncan, escrevendo o romance familiar. 
Nossas aulas de redação me transportam pra sua história, pra um mundo que não me pertence. Talvez a mesma sensação do personagem da Mia Farrow, em 'A rosa púrpura do Cairo', de um dia ir ao cinema e entrar na tela e no filme. Os olhos também brilham de ver os alunos que já alçaram voo se lembrarem ainda de mim. 
É a sensação mais próxima da eternidade que conheço. 

ECL- Outro dia, li uma matéria falando dos restaurantes no Brasil, que fazem comida de outros países, como a França, e escrevem os títulos de pratos no seu cardápio de forma errada. Que conselho você daria para estes empresários? 
EVE- Que é mais fácil, barato e imediato eu fazer a revisão (risos). 

ECL- Acha que o mercado cresceu e as pessoas estão mais conscientes do que seja uma boa alimentação? 
EVE- Penso que você esteja falando de alimentação saudável. A informação circula mais. E, com ela, verdades e mitos. Por esse lado, é muito legal. Por outro, e por trás, há tudo o que nos querem fazer acreditar como bom, porque é interesse de uma sociedade super medicalizada, com seus laboratórios farmacêuticos alinhados à indústria dietética e à da beleza.

ECL- Sempre falo na minha página, @El Cocinero Loko, da importância de dar nome aos pratos que as pessoas criam, o que acaba sendo uma referência cultural e social. Que acha? 
EVE- Ainda bem que você traz para este âmbito o que eu penso para todo o resto: nomear é digno e bonito. 
Os nomes arrastam para a história as coisas feitas pelos seres, engendrando, assim, as referências culturais e sociais. Vamos, sim, batizar os pratos! 


ECL- Na Bahia, precisamente no Recôncavo, temos um patrimônio que são os fumeiros, uma técnica desenvolvida ali, há séculos, mas proibidos pela saúde pública e a polícia do estado. Acha que se deve promover a inserção deste patrimônio, ou simplesmente punir, levando à extinção este bem gastronômico? 
EVE- Se é um caso de cuidado com a saúde pública, que se intervenha com medidas saneadoras e não erradicadoras do patrimônio. Onde já se viu! Os modos de cozinhar ou preservar os alimentos também servem pra pensar. 
Taí o Claude Lévi-Strauss que não me deixa mentir em 'O cru e o cozido', um livro bom de prestar atenção! 

ECL- Você está vivendo fora do Brasil há muitos anos, precisamente no país que mais soube divulgar a própria gastronomia. O Brasil está vendendo melhor sua imagem no quesito culinária? 
EVE- Não posso falar pelo todo. 
Na Provence, incluindo a Côte d'Azur, são raros os restaurantes brasileiros, ao contrário dos asiáticos e magrebinos. Brasileiras que residem há muito tempo aqui no sul são unânimes em dizer que os que abrem fecham as portas rapidamente. 
Os poucos que vi serviam uma má comida, o que dá lugar a pensar que são apenas negócios mal feitos e sem alma. Por outro lado, há mercados de tudo quanto é tipo de produto do Brasil com compra até pela internet. Eu, quando quero e preciso, faço e como em casa, dividindo a mesa, porque tenho orgulho de apresentar a nossa culinária. 
E ainda mato, pelo estômago, a saudade do Brasil. 


ECL- Como fazer para conscientizar as pessoas da importância dos orgânicos? 
EVE- Eu compro, como e dou o exemplo (risos). Às vezes, faço pequenas preleções, pois o povo daqui não parece muito ligado no assunto. Bem ao contrário: muita fritura na manteiga, charcuteria, queijos gordos. Fico me sentindo meio peixe fora d'água. 

ECL- As preferências alimentares são uma das principais bases da identidade cultural. Como vê este momento, onde muitos do nossos famosos chefs valorizam e prestigiam pratos e produtos locais? 
EVE- Vejo com alegria. A independência do Brasil é um grito dado aos poucos. Não é tarefa rápida se desvencilhar da mentalidade secular e pesada do colonialismo. 
O que os anos 20 foram ou pretenderam ser para as artes é o que tem acontecido em nossos dias com a gastronomia, que deixa de se encastelar nos cânones de outras culturas e se reconhece igualmente deliciosa na mandioca, no leite de coco e no dendê. 

ECL- Como vê a participação das mulheres na gastronomia francesa? 
EVE- Elas sempre estiveram presentes. 
Como inspiradoras de cozinheiros célebres e também botando a mão literalmente na massa. Os exemplos clássicos são a 'Tarte des soeurs Tatin' e 'L'omelette de la mère Poulard', que conservaram o nome de suas inventoras. Atualmente, aqui na região, há Reine Sammut, Michèle Visciano e Anne-Sophie Pic, que receberam a distinção das 'étoiles' do Guide Michelin. 

ECL- Você tem uma receita bacana, de acordo com seu conceito gastronômico? 
EVE- Pra provar que as letras também passeiam pela cozinha, pincei este fragmento de 'Cozinhando no Exílio – de ler e comer’, projeto de um livro que ainda vou botar pra andar, assim que soprar bom vento. 
PATO GENTE-FINA, a receita Bem poderia ser galinha. Peru. Coelho. 
De qualquer um, prefiro as carnes tenras, as mais escuras, porque não botam dificuldade na hora de pegar o tempero. Que deve ser o de base: sal, alho, cebola, pimenta-do-reino. Tudo misturado, esfregue na carne antes de ir à panela pra um refogado ligeiro, numa modestíssima quantidade de óleo de coco. Antes de pegar no fundo, junte a água de cozimento em quantidade pouca e tomate pelado espremido entre os dedos. Salpique uma mistura feita de tomilho, orégano, sálvia, alecrim e manjericão desidratados (ervas-da-provence em versão simplificada) pra perfumar. Reduzir o caldo e retificar o gosto. 
Desfie a carne cozida no sentido da fibra, em lascas não muito finas – lembre-se de quando cozinhar uma carne, congelar o que sobrar do caldo em cubas de gelo e utilizar esse concentrado pra temperar outros pratos. Purê, sim. 
Mas de macaxeira, mandioca, aipim. Leve a raiz à fervura com casca e tudo, pois cozida não dá trabalho pra descascar. Triture com vontade, salgue, bote uma gema de ovo e um tantinho de leite pra aveludar, mas nunca amolecer, que a consistência deve ser firme. 
Unte o recipiente e nele deite uma camada do purê de macaxeira. 
Outra do pato desfiado. Outra ainda de macaxeira. 
Espalhe queijo gruyère moído cobrindo toda a superfície. 
No forno, só pra derreter, só até dourar. Atenção pra não deixar o queijo esturricar. 
O Pato Gente-Fina é autossuficiente. Mas eu sou brasileira e gosto de contrastes, de complementos. Por isso, fiz brócolis 'al dente' no vapor, regado de azeite de oliva e alho cru picadinho, pra acompanhar esse pato. Perfeito cavalheiro, não oferece resistência ao ceder lugar à galinha, ao peru e ao coelho. Um exemplo de pato. ps: o Pato Gente-Fina é primo-irmão do Hachis-Parmentier francês. ECL- E pra falar com você... 
EVE- Pelo WhatsApp, (0033) 695 308 016; Facebook, Eveline de Abreu (https://www.facebook.com/evelinedabreu)
e-mail, sobrescrita.redacao@gmail.com ECL- Beijo e obrigado pelo carinho, Eveline! EVE- Beijo e obrigada também, Alicio. 
O carinho por você é das antigas!

2 comentários:

  1. Que maravilha poder ter contato com o pensamento de Eveline, fiquei bem motivada para fazer o curso. obrigada

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    1. Pois não hesite, Ivana: mande qualquer coisa que tenha escrito e faça uma experiência absolutamente à vontade pra ver como a rola a aula. Se gostar, gostou: ganhamos você e eu!

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